O Globo
É um absurdo que um presidente da República
diga a um grupo religioso que vai levar o país para onde eles quiserem. Fossem
de qualquer religião, Bolsonaro não poderia assumir esse compromisso, como fez
com os evangélicos. Não estamos num governo teocrático, nem num país que se
submete a qualquer religião. É um absurdo duplo: campanha eleitoral e
declaração pública de que o governo está à disposição de um grupo religioso em
troca de votos. Um retrocesso terrível para o país.
O presidente Bolsonaro usa até mesmo ardis políticos para tentar enganar os
evangélicos, quando se apresenta uma situação em que seus interesses pessoais
ou políticos colidem com os deles. É o caso do projeto de aprovação do jogo no
Brasil. Apesar de afirmar aos evangélicos que vai vetá-lo, o projeto é de
interesse de sua família. Seu filho Flavio já esteve nos Estados Unidos para
reuniões com grandes financiadores dos jogos de azar.
É um perigo, porque sabidamente, no mundo todo, o jogo é ligado à máfia. E aqui
no Brasil a máfia são os milicianos, especialmente no Rio, onde os Bolsonaros
fazem política há muitos anos. A ligação entre jogos de azar, milícia, máfias e
aprovação no Congresso é uma mistura explosiva. Já está combinada com o
presidente da Câmara, Arthur Lira, a derrubada do veto.
Não será a primeira vez. O presidente vetou em setembro de 2020 o perdão da
dívida das igrejas a pedido da equipe econômica, mas sugeriu a parlamentares da
bancada que derrubassem o veto. Foi o que aconteceu. O artigo que havia sido
vetado por Bolsonaro concede às igrejas isenção do pagamento da Contribuição
Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) e das multas por não quitação do tributo.
Na ocasião, o Ministério da Economia, que era contra o perdão da dívida,
estimou um impacto nas contas públicas da ordem de R$ 1,4 bilhão. Bolsonaro já
havia amenizado, a pedido dos evangélicos, as obrigações fiscais das igrejas. O
cadastro do CNPJ passou a ser obrigatório apenas para matrizes, e o piso de
arrecadação para que uma igreja seja obrigada a declarar suas movimentações
financeiras diárias passou de R$ 1,2 milhão para R$ 4,8 milhões.
Quando anunciou que faria mudanças na área cultural “para preservar os valores
cristãos”, Bolsonaro defendeu que o novo presidente da Ancine deveria ser um
evangélico que conseguisse “recitar de cor 200 versículos bíblicos, que tivesse
os joelhos machucados de tanto ajoelhar e que andasse com a Bíblia debaixo do
braço”. Nomeou para o Supremo Tribunal Federal (STF) um ministro “terrivelmente
evangélico”, seu ex-ministro da Advocacia-Geral da União, o pastor
presbiteriano André Luiz Mendonça.
Rui Barbosa promoveu, desde o governo provisório (Decreto 119-A, de 7/01/1890),
a separação de Igreja e Estado e a laicidade do Estado, consagrada na
Constituição de 1891 e nas Constituições subsequentes. Como diz o ex-chanceler
brasileiro e membro da Academia Brasileira de Letras Celso Lafer, a partir daí
implantou-se uma nítida distinção entre as instituições, motivações e
autoridades religiosas e as instituições estatais e autoridades políticas, “de
tal forma que não haja predomínio de religião sobre a política”.
A laicidade significa que “o Estado se dessolidariza e se afasta de toda e
qualquer religião, em função de um muro de separação entre Estado e Igreja, na
linha da Primeira Emenda da Constituição norte-americana”. Num Estado laico
como Rui Barbosa institucionalizou no Brasil, esclarece Lafer, “as normas
religiosas das diversas confissões são conselhos e orientações dirigidas aos
fiéis, e não comandos para toda a sociedade”.
Quando ainda se falava na possibilidade de nomeação de um ministro do STF
“terrivelmente evangélico”, Lafer destacava que a contribuição de Rui para a
consolidação e para a vigência do espaço público e das instituições
democráticas em nosso país é da maior atualidade, pois “contém o muito presente
risco do indevido transbordamento da religião para o espaço público”.
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