quinta-feira, 10 de março de 2022

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

EDITORIAIS

Janela partidária dá mais força a Centrão nas eleições

Valor Econômico

Enfraquecimento do Executivo e maior autonomia do Centrão, que com bancadas crescentes, comanda o Legislativo, é desafio para próximo presidente

A janela para a troca de partidos está aberta até o dia 1 de abril e o que conta, como sempre, é a busca do dinheiro para a disputa das eleições deste ano. O fundo eleitoral mais que dobrou, para R$ 4,9 bilhões, e não por outro motivo as bancadas que mais devem crescer são as dos partidos do Centrão, que terão o maior quinhão dos recursos. O fundo é distribuído levando em conta as bancadas eleitas em 2018 e não as hoje atuantes na Câmara dos Deputados.

Seja quem for o próximo presidente da República, terá de se entender com um bloco de centro fisiológico reforçado em número de parlamentares e com muito mais poder decisório sobre o Orçamento, como se comprova neste ano em que os recursos das emendas somam R$ 33,5 bilhões, ou um terço das despesas discricionárias da União.

O presidente eleito tende a atrair a adesão do bloco centrista, mas sob compromissos de repartição do poder que podem se revelar paralisantes, a depender da margem de vitória e de sua capacidade de formar alianças, habilidade obrigatória desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, com as consequências que se conhece. À repulsa de formação de um bloco de apoio no Congresso seguiu-se a dependência absoluta do Centrão, que ocupa a Casa Civil e a Secretaria de Governo, além de ter palavra decisiva nas mudanças orçamentárias.

PP, PL, agora partido de Bolsonaro, PSD, de Kassab, Republicanos e PSL, que se fundiu com o DEM, tiveram as maiores bancadas saídas do pleito de 2018, logo disporão das maiores somas de recursos na próxima disputa eleitoral. Como o poder da cúpula partidária é determinante na distribuição do dinheiro e o próprio aumento desmesurado do fundo eleitoral trará o encarecimento das campanhas, os atuais detentores de mandato terão a prioridade de recursos na disputa eleitoral.

Além disso, o fim das coligações partidárias em pleitos proporcionais, uma das mudanças na legislação que podem de fato reduzir o número de partidos de fantasia que circulam pelo Congresso, reduzirá o número de candidatos lançados pelos partidos ao número de vagas em disputa, mais uma. A saber, será preciso apostar nos mais aptos a vencer, situação em que os atuais deputados têm vantagem natural. Por tudo isso, é possível que a renovação na Câmara, grande com a onda direitista que elegeu Bolsonaro, seja menor nas próximas eleições.

Mais recursos em poder do Centrão quase certamente trarão o aumento das futuras bancadas dos partidos que hoje formam o coração da aliança governista, o PP e o PL, mais Republicanos e PSD de Kassab. É preocupante que a polarização entre Bolsonaro e PT tenha enfraquecido substancialmente um dos polos, o dos partidos nos quais ainda se pode discernir alguma ideologia e objetivos programáticos. A tendência vem se consolidando desde as eleições municipais de 2016.

O PSDB, que no poder fulminou a inflação com o Plano Real, vegeta hoje em uma crise que pode ser terminal. Os veteranos da cúpula, desalojados pelas novas forças mais à direita, pregam abertamente contra o vencedor das prévias, João Doria, e defendem que o partido não lance um candidato presidencial próprio, algo inédito na história da legenda. Dividido, o PSDB perdeu força como possível aglutinador de uma hipotética terceira via, verá sua bancada emagrecer na janela de trocas partidárias e possivelmente, também na próxima quadra legislativa.

O PSB busca aliança ou federação com o PT, que não abre mão da disputa para governador de São Paulo - há divergência sobre postulações em outros Estados. A federação daria ao PT o comando de bloco importante na Câmara - os federados são obrigados a votarem juntos nos próximos 4 anos -, mas tolheria o PSB, a menos que a compensação fosse o comando do Palácio dos Bandeirantes, em cuja disputa os candidatos dos dois partidos, Márcio França e Fernando Haddad têm chances (com alguma vantagem para o segundo). O PDT de Ciro Gomes não está em ascensão e deve perder deputados na janela partidária.

Bolsonaro terceirizou seu governo para o Centrão, e Lula se habituou com o Centrão parceiro de governo, como ocorreu em seus dois mandatos e, em parte, nos de Dilma Rousseff. Mas a subordinação era clara, com o Executivo ditando o rumo geral do governo e da pauta no Congresso. A relação de forças parece ter se invertido em direção ao enfraquecimento do Executivo e maior autonomia do Centrão, que com bancadas crescentes, comanda o Legislativo. É um desafio para quem ocupar o Planalto, seja quem for.

Mundo precisa achar alternativa à hegemonia do dólar

O Globo

As sanções financeiras inéditas contra a Rússia tornaram premente um debate que evolui há anos e que, sem exagero, definirá o futuro da economia mundial: até que ponto o dólar resistirá — ou deveria resistir — como moeda global soberana? Ao congelar os ativos do banco central russo e ao suspender os russos do maior sistema global de transações — pulverizando o rublo e a economia russa —, os Estados Unidos despertaram os demais países para o poder desproporcional que concentram, como emissores da principal moeda usada em transações e reservas no planeta.

De que adianta um país acumular centenas de bilhões em dólares para se sentir seguro se, na hora de usá-los, é barrado? O bloqueio ao BC russo incentiva a China a reduzir sua exposição ao dólar (até como proteção, caso se aventure na expansão para Taiwan). Em menor escala, todo país tem interesse em se ver livre da influência da economia e da política doméstica americanas na moeda que mais usam.

Hegemônico desde o final da Primeira Guerra, oficializado na Conferência de Bretton Woods em 1944 e consagrado depois que os Estados Unidos abandonaram o padrão-ouro em 1971, o dólar traz aos americanos o privilégio do endividamento excessivo com o juro artificialmente baixo. Em contrapartida, sua valorização barateia as importações e drena empregos. Esse desequilíbrio foi aproveitado por Europa e Japão depois da Segunda Guerra e pela China nas últimas décadas. Mesmo que abra oportunidades, torna o mundo refém da política monetária e das idiossincrasias geopolíticas americanas.

Por isso economistas têm defendido a rediscussão abrangente das regras do mercado financeiro global, para reduzir os riscos associados à dependência do dólar, uma espécie de Bretton Woods 2.0. “Deveríamos fazer isso agora”, afirmou ao GLOBO Ousmène Mandeng, da London School of Economics.

Até o momento, não surgiu alternativa plausível ao dólar. O euro está sujeito às incertezas resultantes da governança fiscal frágil da União Europeia. O renminbi chinês tem crescido, mas responde por menos de 2,5% das reservas globais, aquém da libra britânica ou do iene japonês. A tentativa do Fundo Monetário Internacional (FMI) de estabelecer uma moeda sintética com uma cesta das cinco principais — chamada “direitos especiais de retirada”, ou SDR — se revelou impraticável nas transações comerciais. Em artigos acadêmicos, Mandeng defende criptomoedas como alternativa ao dólar. A China lançou a primeira moeda digital lastreada em suas contas nacionais. Os chineses também comandam a tentativa de estabelecer um banco central dos Brics, com emissão independente.

O sucesso dessas iniciativas é incerto, mas é preciso encará-las com seriedade. A corrida para o dólar em momentos de incerteza tem sido usada para desmentir os profetas de sua derrocada. “O dólar é meio como a democracia: a pior moeda global, com exceção de todas as demais”, escreveu o historiador Adam Tooze em 2020, manifestando seu ceticismo. Mas o próprio Tooze avisava: “A guerra é, na verdade, o único modelo que temos na Era Moderna de transição de uma moeda hegemônica”. Foi a Primeira Guerra que destronou a libra. Bretton Woods ocorreu logo depois do Dia D, enquanto exércitos ainda se enfrentavam na Europa. Com o conflito na Ucrânia, o mundo não tem mais tempo a perder para tratar do assunto.

País tem de aumentar cobertura das vacinas do calendário infantil

O Globo

A confirmação de um caso de poliomielite num menino de 4 anos em Israel, onde há 30 anos não havia registro da doença, soou os alarmes nos sistemas de saúde do mundo todo. Segundo autoridades israelenses, ele não estava vacinado. A origem do vírus ainda está em investigação. A pólio permanece como doença endêmica apenas na Nigéria, no Paquistão e no Afeganistão. Recentemente foi reportado um surto no Malaui, provocado por uma cepa paquistanesa.

No Brasil, o último caso da doença foi registrado em 1989. O país recebeu o certificado da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) atestando estar livre da doença em 1994. Foi espetacular o esforço brasileiro que levou à erradicação da pólio, simbolizado no popular Zé Gotinha. Nossas campanhas de vacinação se tornaram referência mundial. Atendendo a uma sugestão do próprio Albert Sabin, que desenvolveu a vacina contra a pólio, o Brasil foi o primeiro país a criar um Dia Nacional de Vacinação. Sabin esteve várias vezes por aqui e contribuiu enormemente para a erradicação da doença.

Nos últimos anos, contudo, essa trajetória bem-sucedida mudou. Os índices de vacinação despencaram e hoje não inspiram confiança. Em 2015, a cobertura contra a pólio era de 98%. Em 2020, já durante a pandemia de Covid-19, caiu para 76%. No ano passado, foi para 68%. Considerando o ciclo completo, com reforços, era de apenas 52,5%. Desdobrados em regiões, os indicadores são ainda mais dramáticos. No Norte e no Nordeste estão, respectivamente, em 42% e 44%.

Índices frustrantes não se restringem à pólio. Estão em queda para doenças que só foram controladas com a vacinação em massa. A pandemia contribuiu, mas não é o único fator. A queda já vinha ocorrendo antes. Entre as causas estão as campanhas de desinformação, problemas de acesso aos postos, horário restrito, ausência de publicidade e a situação conhecida como “hesitação vacinal” (vacinas estão disponíveis, mas há a falsa sensação de segurança pela quase erradicação da doença).

O sarampo, altamente contagioso, é o caso exemplar. Em 2016, o Brasil recebeu o certificado de erradicação conferido pela Opas. Mas o descuido com a vacinação fez com que o mal retornasse. Apenas dois anos depois, um surto em estados do Norte voltou a provocar mortes, situação inadmissível, já que não faltam vacinas. Não demorou para que o surto, importado da Venezuela, se espalhasse por outras regiões. Hoje o sarampo se tornou novamente uma preocupação de saúde pública.

É fundamental ampliar a cobertura vacinal no país. A pandemia não serve mais de desculpa, pois está em queda em praticamente todos os estados. Com o avanço da vacinação — quase 75% dos brasileiros estão com o esquema completo —, o movimento nos postos caiu drasticamente. Podem-se aproveitar a estrutura montada (e bem-sucedida) no combate à Covid-19 e a mobilização notável da sociedade para alavancar a vacinação contra outras doenças. Para isso, o Ministério da Saúde precisa se mexer.

Vitória da cidadania e do bom senso

O Estado de S. Paulo.

Liberação das máscaras só foi possível porque a maioria da população aderiu às medidas sanitárias, a despeito da sabotagem de Bolsonaro

Premidos pela emergência da pandemia de covid-19, os brasileiros tiveram de se adaptar muito rapidamente a uma nova forma de vida em sociedade. Além de ter de repensar os cuidados pessoais diante da ameaça de um vírus que causou a morte de mais de 650 mil pessoas no País, cada um precisou dedicar especial atenção à saúde de seus concidadãos. Manter distância uns dos outros, atitude desafeita à própria natureza gregária do nosso povo, que impôs tantas restrições, foi uma das muitas medidas necessárias para frear a disseminação da doença que exigiram disciplina e espírito público. Mas nenhuma dessas medidas representou tão bem esse zelo a um só tempo individual e coletivo como a adesão da maioria dos cidadãos ao uso das máscaras. Nenhum objeto simbolizou essa tragédia – e, por outro lado, a responsabilidade individual e a união de todos que o momento grave exigia – como as máscaras.

Dois anos depois, graças a esse esforço coletivo, e em particular à confiança dos brasileiros nas vacinas, o uso da proteção facial começa a deixar de ser obrigatório em algumas cidades do País. Trata-se de uma sinalização inequívoca de que, se ainda não é possível declarar o fim da pandemia no País, se atingiu um patamar em que sua fase mais mortal, desde que mantida a prudência, pode ter ficado para trás.

O Rio de Janeiro foi a primeira capital a desobrigar o uso das máscaras tanto em ambientes abertos como fechados. Os Estados de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Maranhão e o Distrito Federal também já tornaram facultativo o uso da proteção facial ao ar livre.

Ontem, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou que em todo o Estado o uso de máscaras deixou de ser obrigatório em áreas abertas de shoppings, praias, parques e calçadas. A proteção facial também deixou de ser obrigatória para alunos, professores e funcionários nas áreas externas das escolas. Não há data para a liberação em ambientes fechados, como no Rio, mas, tendo em vista a queda consistente dos casos e mortes decorrentes de covid-19 e o avanço da vacinação infantil em São Paulo, não deve tardar para que os paulistas que assim desejarem também deixem as máscaras de lado em quaisquer ambientes nos quais se sintam seguros.

É importante frisar que a decisão de desobrigar o uso de máscaras está embasada em parecer do comitê científico que assessora o governo de São Paulo. Vale dizer, os cidadãos que se sentirem à vontade podem deixar de usá-las nos espaços apropriados sabendo que a liberação decorre de análises com base em dados científicos. Por outro lado, é altamente recomendável que indivíduos que tenham o sistema imunológico comprometido não deixem de usar a proteção facial em todas as situações. Por razões óbvias, os indivíduos que ainda não completaram o ciclo vacinal e aqueles que apresentam sintomas gripais também devem continuar usando máscara. E também se deve respeitar, é evidente, a vontade de todos os que, independentemente de sua condição, queiram continuar se protegendo.

A liberação do uso das máscaras é o passo mais significativo na direção de uma certa normalidade. Isso só foi possível porque, ao fim e ao cabo, prevaleceu a adesão da esmagadora maioria da população às medidas preconizadas pelas autoridades sanitárias, em especial à vacinação, a despeito da sórdida e incessante campanha do presidente Jair Bolsonaro contra toda e qualquer ação em prol da saúde pública. Por todos os seus desatinos na condução do Brasil durante esse período trevoso, Bolsonaro tem lugar garantido na história como a personificação de um segundo mal que se abateu sobre os brasileiros, além do coronavírus. Quando não foi omisso, o presidente se notabilizou por ações deliberadamente contrárias ao interesse público.

Malgrado a ignorância do presidente e de seus devotos mais fanáticos, prevaleceram o instinto de autoproteção e o espírito público da maioria de seus governados, seja agindo com prudência nos limites de sua responsabilidade, seja pressionando administradores públicos a agirem corretamente nessa crise. Só por isso, e nada mais, hoje é possível vislumbrar dias melhores no futuro próximo.

Bolsonaro ignora a laicidade do Estado

O Estado de S. Paulo.

Despreparado e sem ter o que oferecer aos eleitores, Bolsonaro promete submeter a Presidência à orientação de pastores evangélicos, violando o caráter laico do Estado

Jair Bolsonaro nunca governou. Desde o início do mandato, o presidente sempre esteve em campanha, seja em momentos de folga, que são muitos, seja no horário de expediente, como constatou recente reportagem do Estadão.

Na terça-feira passada, duas horas da agenda de Bolsonaro, que deveria estar repleta de compromissos de Estado em razão das múltiplas crises que o Brasil enfrenta, foram dedicadas a um encontro com pastores e religiosos evangélicos, exigindo mobilizar a estrutura da Presidência. O assunto foi um só: as eleições de outubro. No dia anterior, o encontro, sobre o mesmo tema, havia sido com pecuaristas.

Parece que, para Bolsonaro, não há legislação eleitoral – a impedir o uso da máquina pública para fins eleitorais – e, principalmente, que não existe um país a ser governado. Vale lembrar que o mandato presidencial não é tempo de ócio, disponível para ser preenchido com assuntos eleitorais familiares. É período de trabalho.

Mas Bolsonaro jamais trabalhou nem pretende começar agora. Em vez disso, promete, num eventual segundo mandato, franquear o exercício da Presidência a terceiros – no caso, os pastores evangélicos com quem Bolsonaro se reuniu em um de seus comícios irregulares nas dependências do Estado. Na ocasião, disse o presidente: “Eu dirijo a nação para o lado que os senhores assim desejarem”.

Essa promessa é absurda por sugerir que Bolsonaro entregará o mandato recebido dos eleitores a um determinado grupo social, cujos interesses particulares não correspondem necessariamente aos do conjunto da sociedade. Mais: sendo esse grupo um segmento religioso, Bolsonaro estará violando um limite imprescindível do Estado Democrático de Direito, isto é, o caráter laico do Estado.

Eis o descaramento da indigência intelectual, propositiva e institucional do bolsonarismo. Sem ter o que apresentar – seja em termos de realização do governo, seja em propostas de políticas públicas para o País –, Bolsonaro anuncia simplesmente que terceirizará a condução da administração federal. A bem da verdade, Bolsonaro já faz isso, ao entregar o governo ao Centrão, mas a promessa de privilegiar um grupo religioso vai muito além, pois é cabal descumprimento do compromisso, assumido no dia em que Jair Bolsonaro tomou posse no cargo, de respeitar e defender a Constituição de 1988.

Diante do despautério bolsonarista, é preciso recordar que a separação entre Igreja e Estado, com a necessária neutralidade da máquina estatal a respeito de questões religiosas, é princípio inegociável. Proclamada em 1889, a República veio precisamente desvincular o Estado da religião. A promessa de submeter a administração federal a ideias e valores de um grupo religioso é retrocesso inconcebível e inaceitável, a merecer a mais firme oposição.

A oferta de Bolsonaro aos pastores evangélicos é coerente com a guerra particular que os bolsonaristas travam contra o Estado Democrático de Direito. Com suas homenagens a torturadores e milicianos, Bolsonaro relativiza direitos e garantias fundamentais; com suas ofensas e discursos misóginos, desrespeita a dignidade das mulheres; com seus elogios à ditadura militar, debocha das liberdades cívicas. E agora subverte a própria noção do poder público, que, em vez de atender todos, está explicitamente orientado a servir a uma pauta religiosa.

Na promessa de Bolsonaro aos pastores, há uma concepção ignorante e autoritária de poder do Estado. Mas há também oportunismo eleitoral pouco honroso. Para agradar à plateia, o ex-capitão não tem limites éticos ou institucionais. Fala o que for preciso. Negocia até o que não tem. Por força da Constituição, o Estado brasileiro é absolutamente incapaz de ser submetido a determinado credo religioso. Dessa forma, Jair Bolsonaro manifesta, com sua campanha eleitoral, ser a antítese da liderança. Não tem nada a propor. Apenas se oferece e oferece sua obediência a quem puder lhe trazer votos.

Além de inconstitucional, a promessa de submissão do Estado a líderes religiosos é um jeito certeiro de fugir do debate sobre os problemas nacionais e as possíveis soluções. A César o que é de César.

Tremor global

Folha de S. Paulo

Sanção dos EUA ao petróleo da Rússia eleva os riscos de recessão com inflação

Com forte apoio entre republicanos e democratas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, proibiu importações de petróleo e derivados da Rússia, em mais uma escalada nas sanções econômicas em represália à invasão da Ucrânia.

A restrição, a primeira a atingir o setor de energia, levou as cotações do barril a quase US$ 130 —o que se configura grave, mas ainda não catastrófico, na medida em que as importações americanas não são significativas. Nesta quarta (9), viu-se queda do preço com melhora de expectativas dos investidores.

Para o Brasil fica mais difícil, política e economicamente, manter intacta a prática de repassar aos consumidores domésticos as variações internacionais. De todo modo, um choque mais grave, que praticamente asseguraria uma recessão mundial, depende de um embargo europeu que ainda não se vê.

A relutância da União Europeia em seguir o mesmo caminho decorre de sua dependência. Cerca de 40% dos combustíveis fósseis consumidos no continente vêm da Rússia, e essa fonte não pode ser substituída rapidamente.

Os estragos, de todo modo, já são significativos e se alastram para outras matérias-primas. Com peso de 3% na economia mundial, a Rússia responde por parcelas bem mais elevadas da produção e do comércio internacional de energia, metais e alguns alimentos, não raro ultrapassando 15%.

Na prática, as sanções acabam por segmentar os mercados que antes funcionavam quase sem discriminar a origem dos produtos, mesmo que as proibições legais ainda não os atinjam diretamente.

Isso ocorre porque participantes da cadeia produtiva —operadores logísticos, empresas comercializadoras, bancos, entre outros —recusam-se a transacionar com russos.

Talvez a maior novidade da situação atual nem sejam as draconianas sanções, mas a inédita conduta das empresas privadas ocidentais, pressionadas pela opinião pública e temerosas de riscos legais.

As consequências dessa segmentação do mercado também abalam as economias do Ocidente, num efeito bumerangue.

Assim, começa a subir a desconfiança e a cair a oferta de crédito, normalmente um prenúncio de problemas financeiros maiores, num momento em que a economia mundial já sofre os efeitos da inflação e se aproxima o momento da subida dos juros nos EUA.

O choque das matérias-primas torna o cenário mais complexo. No caso dos bancos centrais não será fácil navegar entre a pressão inflacionária, de um lado, e o risco de recessão magnificado, de outro.

A continuidade da guerra, com mais brutalidade e vítimas civis, deverá manter a escalada de novas sanções e impactos econômicos.

Tragédia ucraniana

Folha de S. Paulo

Guerra produz refugiados aos milhões, e Europa, felizmente, tem sido acolhedora

A invasão da Ucrânia por tropas russas acaba de completar duas semanas e já produziu mais de 2 milhões de refugiados, que se dirigiram principalmente para a Polônia (1,2 milhão), mas também para Hungria, Eslováquia e outros países europeus. Cerca de 100 mil buscaram abrigo do outro lado, deslocando-se para a Rússia.

A ONU calcula que a guerra deverá levar 7 milhões de ucranianos a procurar refúgio em outras nações e submeter outros 7 milhões a deslocamentos internos. Se os números se confirmarem, será o maior movimento migratório provocado por conflitos na Europa desde as guerras dos Bálcãs, nos anos 1990.

Os números de mortos até aqui divulgados são surpreendentemente baixos. Os ucranianos contam cerca de quatro centenas de óbitos, o que parece incompatível com a intensidade dos combates e da artilharia.

Os russos não informaram baixas. O mais provável é que ambos os lados controlem informações para não abalar o moral dos militares e da população.

Outro elemento a agravar a crise humanitária é a Covid-19. A circulação do vírus já se mostrava bastante alta na Ucrânia antes da guerra, e apenas 36% da população estava com o esquema vacinal completo.

As aglomerações em bunkers e a sobrecarga a que o sistema de saúde está sendo submetido para atender os feridos tornam a situação ainda mais preocupante.

A clara preferência dos ucranianos pela Polônia está relacionada ao fato de que, antes da invasão russa, 1,5 milhão já vivia na Polônia como cidadãos naturalizados ou trabalhadores temporários.

Chama a atenção a forma até calorosa com que países da União Europeia recebem os refugiados. Eles são alojados em abrigos temporários e têm acesso a alimentos e serviços hospitalares.

Receberão uma inédita Diretiva de Proteção Temporária, que permite viver e trabalhar nos países da UE por até três anos sem necessidade de requerer asilo.

É brutal o contraste com o tratamento dispensado a oriundos de outros continentes, notadamente os que fugiram da guerra civil na Síria e, ainda mais, os africanos que tentam escapar às agruras econômicas de seus países natais.

A diferença é um golpe nas expectativas daqueles que sonham com um mundo livre de racismo e outros preconceitos. Mas, pragmaticamente, neste momento não há como deixar de considerar positivo todo o apoio aos ucranianos.

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