EDITORIAIS
Janela partidária dá mais força a Centrão
nas eleições
Valor Econômico
Enfraquecimento do Executivo e maior
autonomia do Centrão, que com bancadas crescentes, comanda o Legislativo, é
desafio para próximo presidente
A janela para a troca de partidos está
aberta até o dia 1 de abril e o que conta, como sempre, é a busca do dinheiro
para a disputa das eleições deste ano. O fundo eleitoral mais que dobrou, para
R$ 4,9 bilhões, e não por outro motivo as bancadas que mais devem crescer são
as dos partidos do Centrão, que terão o maior quinhão dos recursos. O fundo é
distribuído levando em conta as bancadas eleitas em 2018 e não as hoje atuantes
na Câmara dos Deputados.
Seja quem for o próximo presidente da
República, terá de se entender com um bloco de centro fisiológico reforçado em
número de parlamentares e com muito mais poder decisório sobre o Orçamento,
como se comprova neste ano em que os recursos das emendas somam R$ 33,5
bilhões, ou um terço das despesas discricionárias da União.
O presidente eleito tende a atrair a adesão do bloco centrista, mas sob compromissos de repartição do poder que podem se revelar paralisantes, a depender da margem de vitória e de sua capacidade de formar alianças, habilidade obrigatória desprezada pelo presidente Jair Bolsonaro, com as consequências que se conhece. À repulsa de formação de um bloco de apoio no Congresso seguiu-se a dependência absoluta do Centrão, que ocupa a Casa Civil e a Secretaria de Governo, além de ter palavra decisiva nas mudanças orçamentárias.
PP, PL, agora partido de Bolsonaro, PSD, de
Kassab, Republicanos e PSL, que se fundiu com o DEM, tiveram as maiores
bancadas saídas do pleito de 2018, logo disporão das maiores somas de recursos
na próxima disputa eleitoral. Como o poder da cúpula partidária é determinante
na distribuição do dinheiro e o próprio aumento desmesurado do fundo eleitoral
trará o encarecimento das campanhas, os atuais detentores de mandato terão a
prioridade de recursos na disputa eleitoral.
Além disso, o fim das coligações partidárias
em pleitos proporcionais, uma das mudanças na legislação que podem de fato
reduzir o número de partidos de fantasia que circulam pelo Congresso, reduzirá
o número de candidatos lançados pelos partidos ao número de vagas em disputa,
mais uma. A saber, será preciso apostar nos mais aptos a vencer, situação em
que os atuais deputados têm vantagem natural. Por tudo isso, é possível que a
renovação na Câmara, grande com a onda direitista que elegeu Bolsonaro, seja
menor nas próximas eleições.
Mais recursos em poder do Centrão quase
certamente trarão o aumento das futuras bancadas dos partidos que hoje formam o
coração da aliança governista, o PP e o PL, mais Republicanos e PSD de Kassab.
É preocupante que a polarização entre Bolsonaro e PT tenha enfraquecido substancialmente
um dos polos, o dos partidos nos quais ainda se pode discernir alguma ideologia
e objetivos programáticos. A tendência vem se consolidando desde as eleições
municipais de 2016.
O PSDB, que no poder fulminou a inflação
com o Plano Real, vegeta hoje em uma crise que pode ser terminal. Os veteranos
da cúpula, desalojados pelas novas forças mais à direita, pregam abertamente
contra o vencedor das prévias, João Doria, e defendem que o partido não lance
um candidato presidencial próprio, algo inédito na história da legenda.
Dividido, o PSDB perdeu força como possível aglutinador de uma hipotética
terceira via, verá sua bancada emagrecer na janela de trocas partidárias e
possivelmente, também na próxima quadra legislativa.
O PSB busca aliança ou federação com o PT,
que não abre mão da disputa para governador de São Paulo - há divergência sobre
postulações em outros Estados. A federação daria ao PT o comando de bloco
importante na Câmara - os federados são obrigados a votarem juntos nos próximos
4 anos -, mas tolheria o PSB, a menos que a compensação fosse o comando do
Palácio dos Bandeirantes, em cuja disputa os candidatos dos dois partidos,
Márcio França e Fernando Haddad têm chances (com alguma vantagem para o
segundo). O PDT de Ciro Gomes não está em ascensão e deve perder deputados na
janela partidária.
Bolsonaro terceirizou seu governo para o Centrão, e Lula se habituou com o Centrão parceiro de governo, como ocorreu em seus dois mandatos e, em parte, nos de Dilma Rousseff. Mas a subordinação era clara, com o Executivo ditando o rumo geral do governo e da pauta no Congresso. A relação de forças parece ter se invertido em direção ao enfraquecimento do Executivo e maior autonomia do Centrão, que com bancadas crescentes, comanda o Legislativo. É um desafio para quem ocupar o Planalto, seja quem for.
Mundo precisa achar alternativa à hegemonia
do dólar
O Globo
As sanções financeiras inéditas contra a
Rússia tornaram premente um debate que evolui há anos e que, sem exagero,
definirá o futuro da economia mundial: até que ponto o dólar resistirá — ou
deveria resistir — como moeda global soberana? Ao congelar os ativos do banco
central russo e ao suspender os russos do maior sistema global de transações —
pulverizando o rublo e a economia russa —, os Estados Unidos despertaram os
demais países para o poder desproporcional que concentram, como emissores da
principal moeda usada em transações e reservas no planeta.
De que adianta um país acumular centenas de
bilhões em dólares para se sentir seguro se, na hora de usá-los, é barrado? O
bloqueio ao BC russo incentiva a China a reduzir sua exposição ao dólar (até
como proteção, caso se aventure na expansão para Taiwan). Em menor escala, todo
país tem interesse em se ver livre da influência da economia e da política
doméstica americanas na moeda que mais usam.
Hegemônico desde o final da Primeira
Guerra, oficializado na Conferência de Bretton Woods em 1944 e consagrado
depois que os Estados Unidos abandonaram o padrão-ouro em 1971, o dólar traz
aos americanos o privilégio do endividamento excessivo com o juro
artificialmente baixo. Em contrapartida, sua valorização barateia as
importações e drena empregos. Esse desequilíbrio foi aproveitado por Europa e
Japão depois da Segunda Guerra e pela China nas últimas décadas. Mesmo que abra
oportunidades, torna o mundo refém da política monetária e das idiossincrasias
geopolíticas americanas.
Por isso economistas têm defendido a
rediscussão abrangente das regras do mercado financeiro global, para reduzir os
riscos associados à dependência do dólar, uma espécie de Bretton Woods 2.0.
“Deveríamos fazer isso agora”, afirmou ao GLOBO Ousmène Mandeng, da London
School of Economics.
Até o momento, não surgiu alternativa
plausível ao dólar. O euro está sujeito às incertezas resultantes da governança
fiscal frágil da União Europeia. O renminbi chinês tem crescido, mas responde
por menos de 2,5% das reservas globais, aquém da libra britânica ou do iene
japonês. A tentativa do Fundo Monetário Internacional (FMI) de estabelecer uma
moeda sintética com uma cesta das cinco principais — chamada “direitos
especiais de retirada”, ou SDR — se revelou impraticável nas transações
comerciais. Em artigos acadêmicos, Mandeng defende criptomoedas como
alternativa ao dólar. A China lançou a primeira moeda digital lastreada em suas
contas nacionais. Os chineses também comandam a tentativa de estabelecer um
banco central dos Brics, com emissão independente.
O sucesso dessas iniciativas é incerto, mas
é preciso encará-las com seriedade. A corrida para o dólar em momentos de
incerteza tem sido usada para desmentir os profetas de sua derrocada. “O dólar
é meio como a democracia: a pior moeda global, com exceção de todas as demais”,
escreveu o historiador Adam Tooze em 2020, manifestando seu ceticismo. Mas o
próprio Tooze avisava: “A guerra é, na verdade, o único modelo que temos na Era
Moderna de transição de uma moeda hegemônica”. Foi a Primeira Guerra que
destronou a libra. Bretton Woods ocorreu logo depois do Dia D, enquanto
exércitos ainda se enfrentavam na Europa. Com o conflito na Ucrânia, o mundo
não tem mais tempo a perder para tratar do assunto.
País tem de aumentar cobertura das vacinas
do calendário infantil
O Globo
A confirmação de um caso de poliomielite
num menino de 4 anos em Israel, onde há 30 anos não havia registro da doença,
soou os alarmes nos sistemas de saúde do mundo todo. Segundo autoridades
israelenses, ele não estava vacinado. A origem do vírus ainda está em
investigação. A pólio permanece como doença endêmica apenas na Nigéria, no
Paquistão e no Afeganistão. Recentemente foi reportado um surto no Malaui,
provocado por uma cepa paquistanesa.
No Brasil, o último caso da doença foi
registrado em 1989. O país recebeu o certificado da Organização Pan-Americana
de Saúde (Opas) atestando estar livre da doença em 1994. Foi espetacular o
esforço brasileiro que levou à erradicação da pólio, simbolizado no popular Zé
Gotinha. Nossas campanhas de vacinação se tornaram referência mundial.
Atendendo a uma sugestão do próprio Albert Sabin, que desenvolveu a vacina
contra a pólio, o Brasil foi o primeiro país a criar um Dia Nacional de
Vacinação. Sabin esteve várias vezes por aqui e contribuiu enormemente para a
erradicação da doença.
Nos últimos anos, contudo, essa trajetória
bem-sucedida mudou. Os índices de vacinação despencaram e hoje não inspiram
confiança. Em 2015, a cobertura contra a pólio era de 98%. Em 2020, já durante
a pandemia de Covid-19, caiu para 76%. No ano passado, foi para 68%.
Considerando o ciclo completo, com reforços, era de apenas 52,5%. Desdobrados
em regiões, os indicadores são ainda mais dramáticos. No Norte e no Nordeste
estão, respectivamente, em 42% e 44%.
Índices frustrantes não se restringem à
pólio. Estão em queda para doenças que só foram controladas com a vacinação em
massa. A pandemia contribuiu, mas não é o único fator. A queda já vinha
ocorrendo antes. Entre as causas estão as campanhas de desinformação, problemas
de acesso aos postos, horário restrito, ausência de publicidade e a situação
conhecida como “hesitação vacinal” (vacinas estão disponíveis, mas há a falsa
sensação de segurança pela quase erradicação da doença).
O sarampo, altamente contagioso, é o caso
exemplar. Em 2016, o Brasil recebeu o certificado de erradicação conferido pela
Opas. Mas o descuido com a vacinação fez com que o mal retornasse. Apenas dois
anos depois, um surto em estados do Norte voltou a provocar mortes, situação
inadmissível, já que não faltam vacinas. Não demorou para que o surto,
importado da Venezuela, se espalhasse por outras regiões. Hoje o sarampo se
tornou novamente uma preocupação de saúde pública.
É fundamental ampliar a cobertura vacinal
no país. A pandemia não serve mais de desculpa, pois está em queda em
praticamente todos os estados. Com o avanço da vacinação — quase 75% dos
brasileiros estão com o esquema completo —, o movimento nos postos caiu
drasticamente. Podem-se aproveitar a estrutura montada (e bem-sucedida) no
combate à Covid-19 e a mobilização notável da sociedade para alavancar a
vacinação contra outras doenças. Para isso, o Ministério da Saúde precisa se mexer.
Vitória da cidadania e do bom senso
O Estado de S. Paulo.
Liberação das máscaras só foi possível
porque a maioria da população aderiu às medidas sanitárias, a despeito da
sabotagem de Bolsonaro
Premidos pela emergência da pandemia de
covid-19, os brasileiros tiveram de se adaptar muito rapidamente a uma nova
forma de vida em sociedade. Além de ter de repensar os cuidados pessoais diante
da ameaça de um vírus que causou a morte de mais de 650 mil pessoas no País,
cada um precisou dedicar especial atenção à saúde de seus concidadãos. Manter
distância uns dos outros, atitude desafeita à própria natureza gregária do
nosso povo, que impôs tantas restrições, foi uma das muitas medidas necessárias
para frear a disseminação da doença que exigiram disciplina e espírito público.
Mas nenhuma dessas medidas representou tão bem esse zelo a um só tempo
individual e coletivo como a adesão da maioria dos cidadãos ao uso das
máscaras. Nenhum objeto simbolizou essa tragédia – e, por outro lado, a
responsabilidade individual e a união de todos que o momento grave exigia –
como as máscaras.
Dois anos depois, graças a esse esforço
coletivo, e em particular à confiança dos brasileiros nas vacinas, o uso da
proteção facial começa a deixar de ser obrigatório em algumas cidades do País.
Trata-se de uma sinalização inequívoca de que, se ainda não é possível declarar
o fim da pandemia no País, se atingiu um patamar em que sua fase mais mortal,
desde que mantida a prudência, pode ter ficado para trás.
O Rio de Janeiro foi a primeira capital a
desobrigar o uso das máscaras tanto em ambientes abertos como fechados. Os
Estados de Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, Maranhão e o Distrito Federal
também já tornaram facultativo o uso da proteção facial ao ar livre.
Ontem, o governador de São Paulo, João
Doria (PSDB), anunciou que em todo o Estado o uso de máscaras deixou de ser
obrigatório em áreas abertas de shoppings, praias, parques e calçadas. A
proteção facial também deixou de ser obrigatória para alunos, professores e
funcionários nas áreas externas das escolas. Não há data para a liberação em
ambientes fechados, como no Rio, mas, tendo em vista a queda consistente dos
casos e mortes decorrentes de covid-19 e o avanço da vacinação infantil em São
Paulo, não deve tardar para que os paulistas que assim desejarem também deixem
as máscaras de lado em quaisquer ambientes nos quais se sintam seguros.
É importante frisar que a decisão de
desobrigar o uso de máscaras está embasada em parecer do comitê científico que
assessora o governo de São Paulo. Vale dizer, os cidadãos que se sentirem à
vontade podem deixar de usá-las nos espaços apropriados sabendo que a liberação
decorre de análises com base em dados científicos. Por outro lado, é altamente
recomendável que indivíduos que tenham o sistema imunológico comprometido não
deixem de usar a proteção facial em todas as situações. Por razões óbvias, os
indivíduos que ainda não completaram o ciclo vacinal e aqueles que apresentam
sintomas gripais também devem continuar usando máscara. E também se deve
respeitar, é evidente, a vontade de todos os que, independentemente de sua
condição, queiram continuar se protegendo.
A liberação do uso das máscaras é o passo
mais significativo na direção de uma certa normalidade. Isso só foi possível
porque, ao fim e ao cabo, prevaleceu a adesão da esmagadora maioria da
população às medidas preconizadas pelas autoridades sanitárias, em especial à
vacinação, a despeito da sórdida e incessante campanha do presidente Jair
Bolsonaro contra toda e qualquer ação em prol da saúde pública. Por todos os
seus desatinos na condução do Brasil durante esse período trevoso, Bolsonaro
tem lugar garantido na história como a personificação de um segundo mal que se
abateu sobre os brasileiros, além do coronavírus. Quando não foi omisso, o
presidente se notabilizou por ações deliberadamente contrárias ao interesse
público.
Malgrado a ignorância do presidente e de
seus devotos mais fanáticos, prevaleceram o instinto de autoproteção e o
espírito público da maioria de seus governados, seja agindo com prudência nos
limites de sua responsabilidade, seja pressionando administradores públicos a
agirem corretamente nessa crise. Só por isso, e nada mais, hoje é possível
vislumbrar dias melhores no futuro próximo.
Bolsonaro ignora a laicidade do Estado
O Estado de S. Paulo.
Despreparado e sem ter o que oferecer aos
eleitores, Bolsonaro promete submeter a Presidência à orientação de pastores
evangélicos, violando o caráter laico do Estado
Jair Bolsonaro nunca governou. Desde o
início do mandato, o presidente sempre esteve em campanha, seja em momentos de
folga, que são muitos, seja no horário de expediente, como constatou recente
reportagem do Estadão.
Na terça-feira passada, duas horas da
agenda de Bolsonaro, que deveria estar repleta de compromissos de Estado em
razão das múltiplas crises que o Brasil enfrenta, foram dedicadas a um encontro
com pastores e religiosos evangélicos, exigindo mobilizar a estrutura da
Presidência. O assunto foi um só: as eleições de outubro. No dia anterior, o
encontro, sobre o mesmo tema, havia sido com pecuaristas.
Parece que, para Bolsonaro, não há
legislação eleitoral – a impedir o uso da máquina pública para fins eleitorais
– e, principalmente, que não existe um país a ser governado. Vale lembrar que o
mandato presidencial não é tempo de ócio, disponível para ser preenchido com
assuntos eleitorais familiares. É período de trabalho.
Mas Bolsonaro jamais trabalhou nem pretende
começar agora. Em vez disso, promete, num eventual segundo mandato, franquear o
exercício da Presidência a terceiros – no caso, os pastores evangélicos com
quem Bolsonaro se reuniu em um de seus comícios irregulares nas dependências do
Estado. Na ocasião, disse o presidente: “Eu dirijo a nação para o lado que os
senhores assim desejarem”.
Essa promessa é absurda por sugerir que
Bolsonaro entregará o mandato recebido dos eleitores a um determinado grupo
social, cujos interesses particulares não correspondem necessariamente aos do
conjunto da sociedade. Mais: sendo esse grupo um segmento religioso, Bolsonaro
estará violando um limite imprescindível do Estado Democrático de Direito, isto
é, o caráter laico do Estado.
Eis o descaramento da indigência
intelectual, propositiva e institucional do bolsonarismo. Sem ter o que
apresentar – seja em termos de realização do governo, seja em propostas de
políticas públicas para o País –, Bolsonaro anuncia simplesmente que
terceirizará a condução da administração federal. A bem da verdade, Bolsonaro
já faz isso, ao entregar o governo ao Centrão, mas a promessa de privilegiar um
grupo religioso vai muito além, pois é cabal descumprimento do compromisso,
assumido no dia em que Jair Bolsonaro tomou posse no cargo, de respeitar e
defender a Constituição de 1988.
Diante do despautério bolsonarista, é
preciso recordar que a separação entre Igreja e Estado, com a necessária
neutralidade da máquina estatal a respeito de questões religiosas, é princípio
inegociável. Proclamada em 1889, a República veio precisamente desvincular o
Estado da religião. A promessa de submeter a administração federal a ideias e
valores de um grupo religioso é retrocesso inconcebível e inaceitável, a
merecer a mais firme oposição.
A oferta de Bolsonaro aos pastores
evangélicos é coerente com a guerra particular que os bolsonaristas travam
contra o Estado Democrático de Direito. Com suas homenagens a torturadores e
milicianos, Bolsonaro relativiza direitos e garantias fundamentais; com suas
ofensas e discursos misóginos, desrespeita a dignidade das mulheres; com seus
elogios à ditadura militar, debocha das liberdades cívicas. E agora subverte a
própria noção do poder público, que, em vez de atender todos, está
explicitamente orientado a servir a uma pauta religiosa.
Na promessa de Bolsonaro aos pastores, há
uma concepção ignorante e autoritária de poder do Estado. Mas há também
oportunismo eleitoral pouco honroso. Para agradar à plateia, o ex-capitão não
tem limites éticos ou institucionais. Fala o que for preciso. Negocia até o que
não tem. Por força da Constituição, o Estado brasileiro é absolutamente incapaz
de ser submetido a determinado credo religioso. Dessa forma, Jair Bolsonaro
manifesta, com sua campanha eleitoral, ser a antítese da liderança. Não tem
nada a propor. Apenas se oferece e oferece sua obediência a quem puder lhe
trazer votos.
Além de inconstitucional, a promessa de
submissão do Estado a líderes religiosos é um jeito certeiro de fugir do debate
sobre os problemas nacionais e as possíveis soluções. A César o que é de César.
Tremor global
Folha de S. Paulo
Sanção dos EUA ao petróleo da Rússia eleva
os riscos de recessão com inflação
Com forte apoio entre republicanos e
democratas, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, proibiu
importações de petróleo e derivados da Rússia, em mais uma escalada nas
sanções econômicas em represália à invasão da Ucrânia.
A restrição, a primeira a atingir o setor
de energia, levou as cotações do barril a quase US$ 130 —o que se configura
grave, mas ainda não catastrófico, na medida em que as importações americanas
não são significativas. Nesta quarta (9), viu-se
queda do preço com melhora de expectativas dos investidores.
Para
o Brasil fica mais difícil, política e economicamente, manter intacta
a prática de repassar aos consumidores domésticos as variações internacionais.
De todo modo, um choque mais grave, que praticamente asseguraria uma recessão
mundial, depende de um embargo europeu que ainda não se vê.
A relutância da União Europeia em seguir o
mesmo caminho decorre de sua dependência. Cerca de 40% dos combustíveis fósseis
consumidos no continente vêm da Rússia, e essa fonte não pode ser substituída
rapidamente.
Os estragos, de todo modo, já são
significativos e se alastram para outras matérias-primas. Com peso de 3% na
economia mundial, a Rússia responde por parcelas bem mais elevadas da produção
e do comércio internacional de energia, metais e alguns alimentos, não raro
ultrapassando 15%.
Na prática, as sanções acabam por segmentar
os mercados que antes funcionavam quase sem discriminar a origem dos produtos,
mesmo que as proibições legais ainda não os atinjam diretamente.
Isso ocorre porque participantes da cadeia
produtiva —operadores logísticos, empresas comercializadoras, bancos, entre
outros —recusam-se a transacionar com russos.
Talvez a maior novidade da situação atual
nem sejam as draconianas sanções, mas a inédita conduta das empresas privadas
ocidentais, pressionadas pela opinião pública e temerosas de riscos legais.
As consequências dessa segmentação do
mercado também abalam as economias do Ocidente, num efeito bumerangue.
Assim, começa a subir a desconfiança e a
cair a oferta de crédito, normalmente um prenúncio de problemas financeiros
maiores, num momento em que a economia mundial já sofre os efeitos da inflação
e se aproxima o momento da subida dos juros nos EUA.
O choque das matérias-primas torna o
cenário mais complexo. No caso dos bancos centrais não será fácil navegar entre
a pressão inflacionária, de um lado, e o risco de recessão magnificado, de
outro.
A continuidade da guerra, com mais
brutalidade e vítimas civis, deverá manter a escalada de novas sanções e
impactos econômicos.
Tragédia ucraniana
Folha de S. Paulo
Guerra produz refugiados aos milhões, e
Europa, felizmente, tem sido acolhedora
A invasão da Ucrânia por tropas russas
acaba de completar duas semanas e já
produziu mais de 2 milhões de refugiados, que se dirigiram principalmente
para a Polônia (1,2 milhão), mas também para Hungria, Eslováquia e outros
países europeus. Cerca de 100 mil buscaram abrigo do outro lado, deslocando-se
para a Rússia.
A ONU calcula que a guerra deverá levar 7
milhões de ucranianos a procurar refúgio em outras nações e submeter outros 7
milhões a deslocamentos internos. Se os números se confirmarem, será o maior
movimento migratório provocado por conflitos na Europa desde as guerras dos
Bálcãs, nos anos 1990.
Os números de mortos até aqui divulgados
são surpreendentemente baixos. Os ucranianos contam cerca de quatro centenas de
óbitos, o que parece incompatível com a intensidade dos combates e da
artilharia.
Os russos não informaram baixas. O mais
provável é que ambos os lados controlem informações para não abalar o moral dos
militares e da população.
Outro
elemento a agravar a crise humanitária é a Covid-19. A circulação do vírus
já se mostrava bastante alta na Ucrânia antes da guerra, e apenas 36% da
população estava com o esquema vacinal completo.
As aglomerações em bunkers e a sobrecarga a
que o sistema de saúde está sendo submetido para atender os feridos tornam a
situação ainda mais preocupante.
A clara preferência dos ucranianos pela
Polônia está relacionada ao fato de que, antes da invasão russa, 1,5 milhão já
vivia na Polônia como cidadãos naturalizados ou trabalhadores temporários.
Chama a atenção a forma até calorosa com
que países da União Europeia recebem os refugiados. Eles são alojados em
abrigos temporários e têm acesso a alimentos e serviços hospitalares.
Receberão uma inédita Diretiva de Proteção
Temporária, que permite viver e trabalhar nos países da UE por até três anos
sem necessidade de requerer asilo.
É brutal o contraste com o tratamento
dispensado a oriundos de outros continentes, notadamente os que fugiram da
guerra civil na Síria e, ainda mais, os africanos que tentam escapar às agruras
econômicas de seus países natais.
A diferença é um golpe nas expectativas
daqueles que sonham com um mundo livre de racismo e outros preconceitos. Mas,
pragmaticamente, neste momento não há como deixar de considerar positivo todo o
apoio aos ucranianos.
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