O Estado de S. Paulo.
De 2016 a 2020, tanto o desmatamento quanto os focos de incêndio em FPNDS foram mais frequentes nas áreas com registro no CAR
Num dos meus últimos artigos, busquei
chamar a atenção para os desafios e oportunidades em torno da Amazônia. Nosso
mais simbólico bioma, relevante por tantos motivos, passou a estar associado
nos últimos anos ao retrocesso brasileiro. Num momento em que governos e
sociedades se mobilizam em várias instâncias – como nas Conferências das Partes
ou COPS, no âmbito das Nações Unidas – para conter o agravamento do aquecimento
global, o Brasil frequenta a imprensa internacional por caminhar na direção
contrária: o desmatamento amazônico.
Para que o leitor tenha dimensão do que
falo: de agosto de 2020 a julho de 2021, segundo os dados oficiais do
Inpe/prodes, 1,32 milhão de hectares de florestas foi derrubado na região
amazônica. O equivalente a mais de 5% de todo o território do Estado de São
Paulo. Ou seja, mantidos os números, em menos de 20 anos teremos desmatada na
Amazônia uma área equivalente a todo o nosso Estado.
Inclusive, o desmatamento amazônico é a maior fonte de emissão de gases de efeito estufa (GEES) no Brasil. A floresta retira carbono da atmosfera e tem função crítica na regulação do regime de chuvas não apenas da região, afora sua biodiversidade.
Conhecer a dinâmica do desmatamento no
bioma é essencial para o desenho de políticas ambientais efetivas. Um
diagnóstico incorreto apenas por sorte conduzirá a um tratamento eficaz.
Conforme estudos do Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (Ipam), a dinâmica do desmatamento vem passando por
mudanças. Se antes a derrubada de vegetação em propriedades e posses rurais era
o principal componente de desflorestamento, em anos recentes o principal vetor
de desmatamento é a grilagem em terras públicas, em especial no que se denomina
de florestas públicas não destinadas (FPNDS). As FPNDS ocupam superfície de
60,7 milhões de hectares do bioma amazônico (14% da área total), o equivalente
a quase duas vezes e meia o território do Estado de São Paulo.
A falta de destinação das FPNDS pelos entes
responsáveis (Estados e, em especial, União) tem aberto caminho para um
processo crônico e crescente de grilagem de terras públicas, seguido por
desmatamento. São ilícitos sobrepostos: a apropriação de patrimônio público
combina-se com a devastação ambiental. De acordo com dados do Inpe, em 2020 as
FPNDS responderam por 32% do desmatamento no bioma; no primeiro trimestre de
2021, por 33%.
Paradoxalmente, o desmatamento de FPNDS tem
se apoiado no uso fraudulento de um instrumento criado pelo Código Florestal de
2012: o Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR é um instrumento cuja finalidade
exclusiva é integrar as informações ambientais de imóveis rurais, servindo de
base de dados para controle, monitoramento, planejamento econômico-ambiental e
combate ao desmatamento. No entanto, o CAR tem sido empregado por grileiros
para comprovação de posse ou propriedade de terras públicas, embora não tenha
natureza fundiária ou validade legal para isso.
Segundo o Ipam, o registro ilegal no CAR
precede a invasão de terras públicas e seu desmatamento, compondo um ciclo: o
CAR, ao dar aparência de regularidade à posse ilegal de terras públicas,
facilita a obtenção dos recursos financeiros que serão usados no desmatamento,
verdadeiro investimento predatório; derrubada a floresta, por vezes em
associação com a pecuária extensiva, os grileiros aguardam a próxima rodada de
regularização da ocupação ilícita; ao fim, legalizada a invasão, a área
torna-se um ativo no mercado fundiário, com o que se estimulam novas rodadas de
invasões e desmatamento.
Os números são alarmantes! Até 2020, 18,6
milhões de hectares de FPNDS foram declarados ilegalmente como imóveis
particulares no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), ou 30,6% da área
total de FPNDS na Amazônia Legal, um aumento de 232% em relação a 2016.
Adicionalmente, o Ipam informa que 44% dos cadastros sobrepostos a FPNDS
abrangem grandes áreas, o que indica a prática da atividade ilegal por agentes
com poder econômico. No período de 2016 a 2020, tanto o desmatamento quanto os
focos de incêndio em FPNDS foram mais frequentes nas áreas com registro no CAR.
O problema, pois, requer intervenção da
parte de diferentes atores. Antes de tudo, o desmonte do aparato de
fiscalização ambiental e fundiária, em especial no âmbito da União (Ibama,
Incra, Inpe, ICMBIO etc.), precisa ser revertido. Os projetos de regularização
fundiária geral e irrestrita, tão recorrentes nos Legislativos, estimulam a
indústria da invasão e do desmatamento, verdadeiros prêmios à grilagem. As
FPNDS deveriam ser transformadas em unidades de conservação, terras indígenas
ou áreas de uso sustentável dos seus recursos, por meio de concessão florestal
ou uso pelas populações tradicionais, vedada sua conversão para usos
alternativos e predatórios. O uso fraudulento do CAR deve ser criminalizado, e
todos os registros sobrepostos a terras públicas devem ser cancelados.
O Brasil demonstrou, num passado nem tão
distante, que sabe fazer política ambiental. Podemos e devemos retomar essa história.
*Senador (PSDB-SP)
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