quinta-feira, 10 de março de 2022

Míriam Leitão: Ato pela Terra, ameaças e viradas

O Globo

O dia começou ontem em Brasília com o improvável encontro do governo e o PT para acertar os últimos detalhes dos projetos para subsidiar os combustíveis fósseis. À tarde, a capital floresceu. O cantor Caetano Veloso e muitos artistas fizeram uma sonora manifestação contra a boiada que Bolsonaro e Arthur Lira (PP-AL) querem passar sobre a Amazônia e as Terras Indígenas, sobre o próprio país, aproveitando a guerra. E, no mundo, tudo de novo no front. Houve uma reviravolta nos preços dos ativos, o petróleo despencou e as bolsas subiram. O mercado precificou o fim da guerra, diante dos sinais de negociação.

O governo Bolsonaro está correndo para aprovar uma excrescência: o PL 191, o mais nocivo de todo o pacote antiambiental, anti-indígena e a favor de agrotóxicos feito por este governo e defendido pelo atual presidente da Câmara dos Deputados. Bolsonaro mentiu, de novo, ao dizer que é preciso aprovar o projeto para nos livrar da dependência externa de fertilizantes. Ele tenta tirar proveito da guerra da Ucrânia.

“Terra. Terra. Por mais distante o errante navegante, quem jamais te esqueceria?” A voz, sempre linda, de Caetano, foi seguida por dezenas de outros artistas e o público no Salão Negro do Senado, diante do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), uma das autoridades a quem eles se dirigiram no Ato pela Terra. Antes, os manifestantes haviam ocupado o gramado em frente ao Congresso. O recado que trouxeram é grave. A Terra corre extremo risco com a destruição da floresta e há mais uma emergência. Voltou a andar o PL que abre as Terras Indígenas a todo o tipo de agressão. Ele havia sido engavetado pelo ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. Agora, Bolsonaro e Arthur Lira, os irmãos siameses da destruição ambiental, querem passar o trator sobre as terras indígenas com o pretexto da falta de fertilizantes por causa da guerra.

A guerra era o pano de fundo do café da manhã na casa do senador Rodrigo Pacheco, presidente do Senado. Quando o ministro Paulo Guedes, o senador Jean Paul Prates (PT-RN) e o senador Eduardo Gomes (MDB-TO), líder do governo, se encontraram o petróleo estava em US$ 123. O assunto da reunião inusitada era a proposta feita pelo Partido dos Trabalhadores de ter um mecanismo de redução dos preços dos combustíveis, o PL 1472. O projeto de autoria do senador Rogério Carvalho (PT-SE) cria uma Conta de Estabilização de Preços. Nela, o governo federal depositará dividendos da Petrobras e receitas de petróleo. O objetivo da Conta é subsidiar os preços dos combustíveis quando eles subirem, como agora. Prates relata também o PLP 11 que muda a forma de cobrança do ICMS sobre combustíveis.

— Este projeto é uma forma de entregar ferramentas ao governo — Bolsonaro hoje, mas que pode ser Lula amanhã — para que possa, em momentos como este, de guerra, de disparada dos preços, atenuar a alta. Vamos tirar dinheiro do próprio petróleo. Quando ele sobe assim, as receitas aumentam. Essa alta iria para a Conta — disse Prates.

Ao fim do dia, não houve consenso, e a votação foi adiada. O petróleo havia caído 11%, para US$ 109, e muita coisa havia mudado no mundo do mercado financeiro. As principais bolsas viveram dia de euforia. Nos Estados Unidos, foram as maiores altas desde novembro de 2020, na Europa, desde o início da pandemia. Na França e na Alemanha, as altas chegaram a 7%. O preço do gás na bolsa de Londres despencou 22%. Um dia só não faz verão. No acumulado do ano, o que se vê são índices com quedas de dois dígitos na Europa e nos EUA, e os preços das commodities ainda em forte alta.

De real existe a guerra, que ainda não acabou e continua oferecendo ao mundo um espetáculo macabro. A Ucrânia está sendo demolida fisicamente, a Rússia está sendo demolida economicamente. A paz, se viesse, seria um alívio.

No Brasil, continua a demolição da democracia, da garantia da vida dos indígenas, da proteção da Amazônia. Mas pelo menos ontem foi dia de ouvir Caetano nos lembrar da Terra. A Terra que o inspirou mesmo quando ele estava na cela de uma cadeia. No discurso, em nome de todos, Caetano falou da “notável” identificação dos artistas com o tema do meio ambiente. “Ouso dizer que isso se deve à natureza abrangente e mesmo sublime da questão ecológica. Nela, os artistas veem a busca da harmonia, a decisão do sentido do humano no mundo, a luz da salvação.”

 

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