Folha de S. Paulo
A guerra ignora as tragédias individuais,
mas é repulsivo que alguns se aproveitem delas
A guerra da Ucrânia nos entra dia e noite pelos olhos, ouvidos e corações, mas pergunto-me se temos como avaliar a tragédia dos que estão participando dela no papel de alvo: a população civil. É terrível imaginar que, em meio aos bombardeios, a vida segue inexorável para tantos ucranianos que, há duas semanas, nada tinham a temer do futuro próximo. Penso, por exemplo, nas gestantes com parto previsto para o começo de março nas condições com que sempre sonharam. Como imaginar que suas contrações se dariam num subterrâneo apinhado e imundo?
Como estarão nos abrigos os que se vêem
acometidos de apendicite, que exige cuidado imediato? E os pacientes de
hemodiálise? E os que dependem de oxigênio e não podem esperar para respirar?
Que serviços continuarão funcionando? Quantos hospitais sobraram? Restaram
laboratórios? Haverá médicos, enfermeiros e motoristas de ambulância
suficientes? Como esses profissionais estarão se alimentando? E quem os estará
alimentando?
Os bombeiros estarão dando conta dos
incêndios? Até prédios civis estão sendo atingidos: escolas, igrejas, abrigos.
Nas últimas casas habitadas faltam comida, luz, água, gás de cozinha e
internet. Há cem mil pessoas dentro do metrô e só algumas saem para pegar o que
resta nos supermercados —assim como o homem da caverna saía por comida para os
outros. Os refugiados rumam para a fronteira a pé, de maca, em cadeiras de
rodas ou nos braços de outros. O que dizer dos velhos e das crianças? E
dos animais?
Mas temos um motivo de orgulho: os
repórteres brasileiros na linha de frente. Estão fazendo um trabalho heroico. É
bom saber que alguns brasileiros voltarão da guerra de cabeça erguida.
Porque é tão repulsivo o político que
se orgulha de
ter se lambuzado à larga com as refugiadas louras quanto o presidente que
aproveita a guerra para estuprar
as comunidades indígenas. É o mesmo estupro.
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