O Estado de S. Paulo.
Os que admiram Putin e a ele juram
‘solidariedade’ são ‘solidários’ no repúdio às liberdades e aos direitos e na
indústria das ‘fake news’
Vladimir Putin é um tirano bonapartista,
típico do século 19. Para ele, a prosperidade só vem com o alargamento dos
domínios territoriais. Exibicionista, proclama que seus armamentos são maiores
que os dos outros. Aboletado no Executivo, atropela o Legislativo, subjuga o
Judiciário e banca o pai forte do povo, passando por cima das mediações da democracia.
Outra faceta do autocrata de Moscou é sua obsessão por idolatrar o passado. O futuro dos sonhos dele é a restauração de uma fantasiosa glória pretérita (a sua “grande Rússia” parece o decalque de um mapa mistificado do século 18). Na verdade, mais do que bonapartista, seu ideário tem marcas de fascismo bruto.
Já se disse que a ambição do presidente
russo poderia ser sintetizada no bordão “make Russia great again”. A boutade
procede. O sujeito tem ares de um Trump em cenários de KGB, um Trump sem freios
nem contrapesos. Aliás, ele faz tudo o que Trump gostaria de fazer e não
consegue. Para trazer a conversa um pouco mais aqui para o nosso lado, ele é
tudo o que Jair Bolsonaro gostaria de ser e jamais conseguirá ser. O russo
parece um destes vilões trilionários de filme de 007, enquanto o presidente
brasileiro nunca passou de lobisomem chinfrim de comédia de Mazzaropi. Vai daí
que, tolerado pela China, bajulado pela Venezuela e elogiado discretamente por
Trump, Putin é secretamente invejado pelo inquilino do Palácio da Alvorada.
Em resumo, quando o assunto é Vladimir
Putin, figuras que parecem não ter nada em comum, como Maduro e Bolsonaro,
entram num balé sincronizado. Por que será? O que faz vibrar na mesma
frequência o trumpismo dos terraplanistas e o confucionismo maoísta do Partido
Comunista Chinês? Por que os autocratas de Caracas, que enchem a boca para
falar em “guerra anti-imperialista”, ganham eco no Palácio do Planalto, cujos
ocupantes discursam em nome de “Deus” e da “família”? Que eixo transcontinental
é este, tortuoso e rijo, que alinha corpos terrestres tão díspares?
As respostas para tais perguntas costumam
denunciar equívocos nas análises de uns e outros, como se o apoio ao tirano
russo decorresse de um defeito da razão ou de equívocos involuntários. Essas
respostas têm sentido, claro, mas talvez não sejam a melhor explicação. É mais
provável que o eixo libidinal do putinismo não tenha nada que ver com a razão –
nada que ver com Otan, com fertilizantes, com petróleo, agronegócio ou geopolítica
–, mas com o desejo. Os fãs de Putin, por mais arestas que tenham entre si,
cultivam o mesmo ódio apaixonado e selvagem contra o que a civilização nos
legou de melhor: o pensamento crítico, a liberdade em feitio de fraternidade e
o primado da verdade de fato, também conhecida como verdade factual.
Eis por que estes brucutus que não sabem a
diferença entre Crimeia e cremalheira se excitam diante das atrocidades
milimetricamente calculadas pelo artífice da invasão armada da Ucrânia, que já
matou aproximadamente 500 civis e já provocou a fuga de 2 milhões de pessoas.
Putin angaria os fãs que tem – amuados ou ruidosos – não apesar de assassinar
inocentes, mas justamente por não ter hesitação em dizimar quem quer que seja.
Seu poder de atração não vem de um cálculo estratégico frio, mas do arrojo
tanático, do manejo inescrupuloso do terror, da ausência de princípios e da
desumanidade.
Agora, o ditador deflagrou uma guerra
mundial contra a verdade de fato e contra a imprensa. Na sexta-feira, 4 de
março, a Duma (o Parlamento russo), manietada por ele, aprovou uma lei
proibindo o uso de palavras como “guerra” ou “invasão” para descrever os
ataques russos contra a Ucrânia. Conforme estabelece a nova legislação, a
guerra deve ser chamada de “operação militar especial”. Twitter e Facebook
foram bloqueados. Os sites da BBC, da Voz da América e da Rádio Free Europe,
interditados. O acesso à Deutsche Welle foi limitado. Ameaçadas, agências
internacionais suspenderam ou reduziram as atividades no país. A guerra mundial
contra a verdade dos fatos faz vítimas no mundo todo.
No lugar dos fatos, entram em cena as
mentiras oficiais. Segundo a semântica do Kremlin, a “operação militar
especial” foi deflagrada para libertar o povo ucraniano do “neonazismo”, e
ninguém pode falar contra. Desde o dia 24 de fevereiro, estima-se que mais de
13 mil pessoas foram presas em protestos contra a guerra. Somente no domingo,
dia 6 de março, as autoridades prenderam 4,3 mil manifestantes em Moscou e
outras cidades, segundo números da ONG OVD-INFO.
Putin sabe que seu triunfo, cada vez mais
incerto, depende de um nível planetário de desinformação industrializada e
profunda. Seus apoiadores, velados ou descarados, sabem que estão no mesmo
barco: se a verdade factual prevalecer, estão perdidos. Passa por aí a
identidade dos estranhos que o admiram e a ele juram “solidariedade”. São
“solidários” no repúdio às liberdades e aos direitos, são “solidários” na
indústria internacional das fake news. Não é por ignorância que aplaudem o novo
senhor da guerra – é por ódio.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
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