quarta-feira, 5 de abril de 2023

Cristovam Buarque* - O teto solar de Fernando Haddad

Blog do Noblat / Metrópoles

O Plano Haddad do Arcabouço Fiscal é superior ao teto fixo dos gastos do Plano Meirelles

Nas casas e carros, o teto solar permite proteger da chuva sem tirar a visão do céu, mas não para a chuva. Com seu arcabouço fiscal, o ministro Fernando Haddad tenta manter a proteção no presente sem perder a perspectiva de médio prazo, mas sem limpar o céu das tempestades previstas: riscos viciados em subsídios, máquina pública ineficiente, pobres que necessitam de ajuda. Reconhece os riscos do desequilíbrio fiscal nos momentos de gastos maiores do que receitas, sem barrar os investimentos necessários quando as receitas crescerem. Neste sentido, com seu teto solar, o Plano Haddad do Arcabouço Fiscal é superior ao teto fixo dos gastos do Plano Meirelles. Este era estático, o novo é dinâmico.

O teto de Meirelles permitiu recuperar confiança entre consumidores, poupadores, investidores e distribuidores, aos quais nos acostumamos chamar de mercado, mas amarrou de tal forma a realidade social e econômica que a tempestade arrancou a âncora. Enquanto resistiu, a confiança trouxe redução na taxa de juros e volta de investimentos e empregos, embora ainda de forma tímida. Ao substituir o teto estático por um teto dinâmico, o ministro Haddad oferece não mais apenas uma âncora que amarra, mas um arcabouço com limites de despesas sem perder a visão da paisagem social e econômica: capaz de amarrar quando precisa e soltar quando possível. É um plano fiscal e monetário, sem ignorar o impacto do orçamento sobre o quadro social e econômico. Representa um avanço conceitual ao pensamento expansionista dominante nas esquerdas, que prioriza o gasto estatal sem levar em conta os riscos quando acima das receitas, e ao pensamento fiscalista da direita, que subordina as necessidades econômicas e sociais do futuro ao desequilíbrio no presente.

O Plano Haddad tenta domar as contas públicas atuais olhando para o futuro econômico e social: considera o dinamismo que virá dos investimentos graças à confiança no equilíbrio das contas, sem desprezar as necessidades sociais que precisam de mais gastos públicos. Se cumprir as metas que apresentou com esperança de atingir, o arcabouço pautará as finanças brasileiras, sem ser uma amarra ao crescimento econômico, nem um agravante à tragédia social. Mas a realidade pode dificultar este otimismo.

Primeiro, o teto solar abre a visão, mas sua mecânica exige brechas por onde a água das chuvas podem entrar: o arcabouço olha o futuro, mas deixa riscos de que em poucos meses as despesas ultrapassarem os limites esperados, seja por serem gastos obrigatórios pela constituição, pressionados pela força do corporativismo, ou necessários para aliviar a tragédia social. Segundo, o arcabouço não explora a necessidade de, além da eliminação de privilégios daqueles que não pagam impostos, os isentos, é preciso acabar com os privilégios daqueles que gastam muito, os depredadores. Se não enfrentar os vícios, desperdícios e ineficiências no setor público e privado, o arcabouço perderá receitas, credibilidade e não resistirá.

Além da sonegação estrutural devido ao emaranhado de subsídios fiscais, temos um desperdício estrutural sob a forma do emaranhado de privilégios e ineficiências, que a República trouxe do Império e agravou com o corporativismo, imediatismo e populismo na democracia. Sem enfrentar estes vícios, o arcabouço fiscal não caberá no patrimonialismo e na cultura desperdiçadora, consumista e não poupadora que a sociedade brasileira pratica pela cúpula do poder político, com seus privilégios, salários e mordomias, e pelos empresários com seus imensos salários e bônus.

Arcabouço é melhor do que âncora; esta, amarra, o outro, norteia. Mas seu sucesso depende dos ventos da cultura brasileira com voracidade no consumo e anorexia na poupança, com populismo e imediatismo na política, tanto no comportamento dos eleitos quanto de seus eleitores, com tolerância à ineficiência e ao desperdício; passiva diante da injustiça, da pobreza, da desigualdade, do atraso educacional. O teto solar não impede a chuva e permite vazamentos que podem desequilibrar, inflacionar e endividar, e em meses nos levar de volta à crise. Porque arcabouço é melhor que âncora e teto aberto é melhor que fechado, mas não tocam nas causas estruturais de nossos desequilíbrios e dos impedimentos ao nosso progresso.

Os economistas debatem se a inflação é de custo ou de demanda, ignoram que ela é decorrente também da estrutura econômica e social e da própria cultura nacional; e não é uma questão apenas do momento, mas histórica. Seu enfrentamento por planos fiscais – Funaro (Cruzado), Maílson (Verão), Zélia (Confisco), FHC (Real), Meirelles (Teto) – deram alívio, mas não resolveram. O uso dos nomes de ministros e não de seus presidentes mostra a limitação destes planos.

Não basta ver a chuva, nenhum teto resiste às tempestades. Nossa inflação, recessão e desemprego não serão superados no longo prazo sem enfrentarmos a cultura patrimonialista, os gastos públicos e privados descontrolados, as mordomias, excesso de crédito, baixo nível educacional, concentração de renda, persistência da pobreza e da apartação. A inflação é a febre, mas há um vírus causador que exige vacinas. Não basta o teto solar para enfrentar a causa, mas Fernando Haddad nos trouxe, pelo menos, um antibiótico e a intenção de enfrentar o problema de maneira inteligente, dinâmica, com responsabilidade fiscal, percepção econômica, sensibilidade social.

A crise fiscal é causa, mas também é consequência da crise nacional. Não teremos um equilíbrio dinâmico de médio prazo se não enfrentarmos a estrutura injusta, ineficiente, imediatista e populista. Isto não é tarefa de Fernando Haddad, nem da área econômica, ele fez o melhor, saindo do teto fixo ao teto solar, mas se não avançarmos do cuidado fiscal às reformas estruturais, os vazamentos voltarão com todas suas consequências. O arcabouço é uma tentativa necessária que merece apoio, mas insuficiente enquanto não tivermos o plano para um rumo histórico com o nome do presidente.

*Cristovam Buarque foi senador, ministro e governador

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