Folha de S. Paulo
Maior derrotado pelo bolsonarismo foi uma
direita republicana
Já que se quer falar do futuro
do bolsonarismo, deixem-me colocar uma questão normativa: ele cumpre as
condições necessárias para ser uma força legítima em uma sociedade de direitos
e liberdades, politicamente igualitária e pluralista?
A questão não é se o bolsonarismo tem um
lugar democraticamente legítimo na vida pública e no Estado brasileiros.
Afinal, à mesa da democracia eleitoral, pelas regras do jogo, sentam-se todos
os que ganharem mandatos em eleições livres e limpas, atividade em que os
bolsonaristas têm obtido notável êxito.
A mesa republicana exige outras coisas dos
seus comensais. O combinado republicano mais elementar é que o Estado não é
propriedade de quem o governa, mas de todos, inclusive daqueles de quem o
governante não gosta e daqueles que não gostam de quem está ao governo. Para
garantir esse fundamento, uma res publica dota-se de um sistema de
constrangimentos e obrigações para que os mandatários sejam forçados a
respeitar direitos e garantias, a proteger e assegurar a liberdade de todos e a
acatar o princípio da igualdade política.
É assim que governantes se dobram ao fato de que todo o poder emana do povo e deve ser exercício em mandatos temporários, sob supervisão de outros poderes e com obrigações de prestação de contas e de responsabilização.
Voltemos à pergunta inicial. Para começo de
conversa, precisamos nos entender sobre o que é bolsonarismo.
Antes de tudo, o bolsonarismo é a versão
brasileira de um recente movimento internacional iliberal, autoritário e com
consistente inclinação fascista. "Fascismo" aqui não é o insulto
fácil que a esquerda vulgarizou, mas a designação própria de uma ideologia
orientada por três dimensões: um fortíssimo nacionalismo, depurado de
pluralismo interno, que programaticamente expurga as diferenças e veta o
dissenso; a exaltação de uma sociedade baseada na vontade popular expressa e
representada pelo líder carismático (il Dulce, der Führer, o Mito), em
substituição a uma sociedade feita de leis e liberdades; um redesenho
institucional do Estado, que começa pela anulação das instituições
intermediárias e dos sistemas de pesos e contrapesos das democracias liberais e
se conclui com uma organização hierárquica linear baseada na força em cujo
vértice está o líder supremo, de quem a vontade é lei.
Não estou dizendo que o bolsonarismo é um
fascismo, e sim que é um movimento que programaticamente ataca todos os
obstáculos constitucionais à conversão de um Estado democrático em um fascista:
os três Poderes, o dissenso,
direitos e liberdades de minorias políticas, tolerância, transparência pública,
a impessoalidade, controle de constitucionalidade e revisão judicial, liberdade
intelectual, de consciência, de imprensa etc.
Esse bolsonarismo poderia "dar vigor à
política brasileira" ou "liderar uma oposição saudável", se
abandonasse a violência, o autoritarismo, "a atitude antidemocrática e a
polarização irracional", como cravou um editorial desta Folha? Dadas todas as premissas
apresentadas, a resposta é certamente não. O bolsonarismo é essencialmente
intolerante a uma democracia liberal, aos princípios de um Estado republicano e
até às bases de uma sociedade justa.
Pergunta diferente é se é possível
desentranhar, da amálgama que é formado o bolsonarismo, alguma coisa
democraticamente legítima e não republicanamente imprestável.
Nesse caso, acho que uma resposta positiva
pode começar a ser desenhada, embora não caiba nestas linhas. Considero que o
maior derrotado pelo bolsonarismo foi uma direita republicana,
que faz muita falta em uma democracia e poderia representar de forma legítima
interesses de boa parte da sociedade. O mesmo pode ser dito de um
conservadorismo que se coloque dentro dos limites da democracia liberal,
representando um dos lados de certos desacordos morais legítimos, em
substituição ao reacionarismo iliberal, dogmático e fundamentalista sustentado
pelo bolsonarismo.
Desentranhar uma direita republicana e um
conservadorismo democrático do compósito bolsonarista seria injetar pluralismo
e diversidade em um projeto de sociedade e de Estado em que várias partes
pudessem acomodar e expressar democraticamente os seus interesses. Mas
desentranhar, no caso, significa decompor. Ou seja, talvez só a decomposição do
bolsonarismo, extraindo dele o que possa passar por uma reconversão
republicana, seja o caminho para reincorporar uma parte importante do país à
grande mesa da democracia.
*Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
Nenhum comentário:
Postar um comentário