Maria Fortuna / O Globo
Em entrevista exclusiva,
ministra da Cultura conta que encontrou mais de 1.000 projetos engavetados ao
assumir a pasta, anuncia prêmio literário de R$ 2 milhões, fala sobre relação
com Janja, explica dívidas na Justiça e rebate críticas que recebeu ao ser
indicada
O aparelho de som ainda não
chegou de Salvador, mas o violão e as plantas espalhadas vão dando à
baiana Margareth Menezes a
sensação de que, finalmente, está em casa em Brasília. A ministra da Cultura
assumiu o cargo há três meses, mas só agora conseguiu se instalar no
apartamento funcional. À medida que dá seus toques pessoais ao ambiente,
sente-se mais adaptada.
Quando tomou posse, ela
levou logo de cara um choque de realidade que já anunciava o tamanho do
desmonte sofrido pelo setor nos últimos anos. Deparou-se com
1.946 projetos engavetados desde 2021. Todos com parecer favorável para
captação de recursos pelas leis de incentivo, com patrocínio garantido,
aguardando apenas uma canetada final para saírem do papel. Cravar ali o seu
jamegão foi a primeira ação da ministra.
No último dia 23, Margareth
assinou, ao lado do presidente Lula, novo decreto que
regulamenta o fomento cultural no país. Nesta quarta-feira (4),
lança o edital Carolina Maria de Jesus (com a presença da filha e da neta da
escritora), que vai contemplar 40 escritoras mulheres com R$ 50 mil cada. Mas
foi um ato emblemático, realizado na semana passada, que mexeu com as emoções
da ministra: a instalação do letreiro do Ministério da Cultura.
— Foi um simbolismo grande porque é a confirmação do renascimento do MinC. Do resgate da afirmação da democracia, após desmonte de políticas públicas pelo viés da perseguição e da criminalização num país em que sete milhões de trabalhadores e trabalhadoras da cultura foram relegados ao nada — desabafa. — Temos aqui um corpo de pessoas, gestores e servidores, lutando muito para reformular todas as coisas depois de tudo que passaram. É preciso entender que cultura é a primeira ferramenta de ascensão social do povo. E que onde existe ação cultural e letramento, existe combate à violência.
Ao ter seu nome anunciado
para a pasta, em 2022, Margareth sofreu resistência de alguns gestores
culturais e de uma ala do PT. Era gente que defendia alguém mais “técnico” para
o cargo e questionava a capacidade da artista, criticando a falta de um passado
sólido de gestora. Também diziam que ela fora escolhida apenas por ser amiga de
Janja. Em meio aos ataques, artistas, escritores e
ativistas saíram em defesa da cantora, que há 30 anos cuida da
própria carreira, reforçando suas habilidades e trajetória.
Nesta entrevista exclusiva,
realizada por um aplicativo de reunião, Margareth rebate críticas, analisa os
cem primeiros dias de recriação do MinC, fala sobre os limites éticos para
conciliar o cargo e a carreira artística e dá sua versão sobre dívidas com a
Justiça.
CULTURA POR MARGARETH
"É a alma de um povo,
por onde circula o sangue do corpo Brasil. Num país que tem essa dimensão e
diversidade de influências e etnias é um legado imenso, com suas diferenças e
interseções. É a linha que nos liga. A cultura do Brasil é um grande tesouro,
uma mina de ouro. E sempre foi uma estação de representatividade muito
forte".
POR QUE MINISTÉRIO E NÃO
SECRETARIA?
"O Ministério é
formado por seis secretarias, órgãos vinculados que têm a função de cuidar da
Cultura. Não dá para relegar tudo isso a uma secretaria. Precisamos respeitar a
dimensão do nosso fazer cultural. São vários assuntos compartimentados com uma
dimensão enorme. É necessário investir nesse escopo de Ministério para que a
cultura progrida. Adotar políticas públicas que cheguem em todas as áreas e em
todas as manifestações culturais, desde o patrimônio material e imaterial até
desdobramentos como a cultura digital e urbana. Cada setor requer o tratamento
específico para ser potencializado e se tornar vetor econômico do Brasil".
ORÇAMENTO RECORDE
“Esse investimento (R$
10 bilhões em 2023) vem da ideia do presidente Lula de a
cultura ser ferramenta de ascensão social e econômica. Ainda mais num momento
em que o país está precisando de emprego. O retorno em relação ao PIB é maior
que o da indústria automotiva, de acordo com pesquisa que será divulgada. A
experiência de incluir aporte de financiamento na cultura foi vivida por outros
países que passaram por fortes crises econômicas. Nos Estados Unidos, após a
Segunda Guerra, foi a partir do cinema.
Outra pesquisa, americana,
mostra que a cultura brasileira é a 13ª que mais influencia outros países. Já
foi a 7ª. Isso sem a gente fazer o investimento adequado. É bom dizer que a
dimensão desse orçamento é a de um ministério que ficou destruído por quatro
anos. É preciso reposicioná-lo e, para reconstruí-lo e formatá-lo, é preciso
verba. Teremos representação em todos os estados, comitês de cultura
funcionarão como braços do MinC para auxiliar na execução das políticas
públicas e ouvir a sociedade. Falam em orçamento gigante, mas ele é paulatino,
não é algo que está aqui, na mão. Tem as execuções previstas de acordo com suas
funções".
CEM DIAS DE RECRIAÇÃO DO
MINC
“O saldo é positivo. Nem
existia ministério... Só de reconstruir uma arquitetura dessas... Destravamos
1.946 projetos aprovados pela Lei Rouanet, que somavam quase R$ 1 bilhão em
recursos. Fizemos o novo decreto, desenrolamos a Lei Aldir Blanc 2. Uma verba
de R$ 450 milhões destinada à Ancine também estava travada. (Em fevereiro, Margareth anunciou a publicação dos resultados dos
editais de cinema que deram início à contratação de 250 projetos
cinematográficos. Ao todo, o setor audiovisual receberá investimento de R$ 1
bilhão, garante o MinC).
LEIS DE FOMENTO
“A Lei Aldir Blanc 2 nos
dá orçamento anual obrigatório de R$ 3 bilhões para políticas públicas
culturais, que serão repassados a estados e municípios de 2024 a 2028. Um grupo
de trabalho atua no documento da Lei Paulo Gustavo, que será regulamentada até
maio. Prevê R$ 2,7 bilhões para o audiovisual (fora a verba já citada acima)
e R$ 1,065 bilhões para as demais áreas. Essa lei seria executada por duas
vezes, e o governo Bolsonaro travou.
Muitas pessoas perderam seus postos de trabalho, instrumentos... Estúdios e
cinemas fecharam. Tem coisa que até hoje não se recuperou".
DESCENTRALIZAÇÃO DE
VERBAS
“O novo decreto que
regulamenta mudanças na lei que define as principais políticas públicas do
país, como Lei Rouanet,
Paulo Gustavo e Aldir Blanc, prevê a ampliação do leque de distribuição de
verbas de fomento para as regiões Nordeste, Norte, Centro-Oeste. O
ministro Gilberto Gil já
criticava as desigualdades na Rouanet, tanto regional como racial. Houve a
experiência exitosa com a Lei Aldir Blanc 1 na pandemia. E isso sem o
ministério... Agora, estamos trazendo essa ferramenta usada pelo setor cultural
para o novo decreto.
O ministério também entra
oferecendo uma diretoria, já instalada, para assessorar prefeituras. Existe
diálogo com patrocinadores para a conscientização tanto sobre a
descentralização como em relação à diversidade. Estamos trazendo de volta a
Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, que tinha sido desligada do processo
de avaliação. O novo decreto prevê que o Ministério pode indicar projetos para
as empresas. Desta forma, seremos os maiores fiscais da descentralização.
Também faremos uma unificação
dos trâmites das leis de fomento via Instrução Normativa, um marco regulatório
para que haja uma harmonização dos procedimentos de todas elas. Isso facilita
tanto para o Ministério como para os agentes culturais. Teremos olhar especial
para a região Norte, riquíssima e sempre excluída por ter configuração
diferente por causa do custo amazônico. Agora, com o Ministério dos Povos
Indígenas, começa a haver uma compreensão maior da importância dessa
cultura essencial para a identidade nacional e vamos contemplá-la. Através da
cultura, podemos buscar interface com o meio ambiente e a educação, trazer de
volta cursos de arte para as escolas e auxiliar a nova geração a entender mais
sobre a cultura do nosso povo brasileiro, a diversidade, a cultura
afrobrasileira".
SECRETARIADO
"Estou sendo auxiliada
por Márcio Tavares, secretário-executivo, que é jovem talento na política e no
conhecimento também. Trouxemos quadros de competência. Henilton Menezes (Secretário de Economia Criativa e Fomento Cultural, que estava
presente nesta entrevista) é uma sumidade no assunto do Fomento.
Estamos trabalhando com pessoas que entendem dos assuntos. Em anos de
ministério, as políticas criadas aqui foram pensadas por gestores culturais,
que fizeram coisas com substância. Houve pesquisas, foram anos de documentações
e ações práticas feitas nos governos Lula, com Juca Ferreira, Gilberto Gil. A
diversidade do Brasil tinha sido mapeada e estava no terceiro processo quando
foi estancada. Estamos retomando os pontos de cultura e vamos ampliá-los para
dar apoio a todas essas nossas ações".
Margareth também trouxe de
volta Marcos Souza à Secretaria de Direitos Autorais e Intelectuais do MinC.
Ele integrou o Ministério em governos anteriores. Fabiano Piúba, secretário de
Formação Cultural, Livro e Leitura, também acompanhava a ministra nesta
entrevista.
EDITAIS
“Serão selecionadas 40
obras escritas por mulheres. Cada uma receberá R$ 50 mil. É o maior prêmio
literário do país em valor absoluto: R$ 2 milhões — 20% deverão ser obras de
mulheres negras, 10% indígenas, 10 % com deficiência, 5% ciganas, 5%
quilombolas. Quando se cria esses percentuais, e estamos fazendo isso no
decreto também, possibilita-se o acesso a oportunidades. Premiaremos contos,
crônicas, poesias, quadrinhos, romance, roteiro de teatro inéditos e redigidos
em português.
O Banco do Brasil lançou
edital de R$ 150 milhões para projetos dos CCBBs de Belo Horizonte, Brasília,
Rio de Janeiro e São Paulo. O Banco do Nordeste lançou outro no valor de R$ 10
milhões só para iniciativas daquela região”. Além das ações indicadas pela
ministra, o Brasil é convidado de honra da 7º edição do Mercado de Indústrias
Criativas Argentinas (Mica) 2023, e o MinC abriu edital para levar 90
empreendedores culturais ao evento, num investimento de R$ 800 mil.
CARREIRA ARTÍSTICA X
CARGO PÚBLICO
"Ficamos dois anos com
projetos de carnaval parados por conta da pandemia. Esse era para ser um dos
meus verões com mais trabalho. Abri mão de 90% dos meus compromissos porque fui
empossada como ministra e algumas coisas tinham patrocínio. Cumpri outros que
já tinham sido programados antes do ministério.
É impossível viver sem esse
trabalho. Há pessoas em todos os ministérios que são advogados, médicos e
cumprem compromissos em suas profissões quando é possível. Claro que observando
os limites dessas ações. Consultarei sempre a Comissão de Ética. Sou artista,
tenho 37 anos de carreira que construí com meu suor. Havendo oportunidade
adequada e com todos os cuidados possíveis, estarei. Não dá para viver sem
cantar. Até porque, são quatro anos de ministério e eu tenho minha carreira
pela frente. Talvez, no ano que vem, eu vá fazer uma puxada de trio ("a gente faz uma vaquinha", brinca a assessora, que
acompanhava a entrevista).
ATAQUES E CAPACIDADE
QUESTIONADA
"Sofri perseguição. É
uma prática que acontece porque é chocante uma mulher negra em lugar de poder.
Tenho amigas executivas, lideranças negras que sentem isso na pele. Em nosso
país, racismo e misoginia são normatizados. Essa prática maldosa faz parte dos
que não querem a democracia, dos que perseguem legados e direitos. Recebi apoio
e foi importante. Venho da iniciativa civil, sou artista e aprendi a fazer tudo
na dificuldade. Passei perrengues e cometi muito erros. Aprendi e tenho muita
ajuda. Minha maneira de me relacionar com a vida é fraterna. Sou educada, trato
bem as pessoas. Fico chocada com o comportamento repugnante e antidemocrático
de alguns agentes públicos”.
JANJA E LULA
"Janja é uma pessoa
afável, aberta à comunicação. Figura sensível, mulher moderna que se compromete
e acredita no Brasil. Sempre fortalece a Cultura com suas atitudes, está
presente em todas as ações legais do ministério. Quando houve os ataques, ela
me telefonou e disse: 'Não liga para isso, segue em frente'. É muito bom ter
esse feedback. É uma primeira-dama de ação, e isso é bom para a mulher, para a
representação feminina. Precisamos fortalecer a presença feminina no Congresso.
É enorme a contribuição que podemos dar no sentido de desenvolvimento e de mudança
na forma de fazer as coisas na administração pública. Janja representa a mulher
de peito, que quer participar.
O presidente Lula compôs
seu Ministério de 11 mulheres em posições estratégicas e tem esse olhar na luta
contra o feminicídio. Acho que é a primeira vez que a mulher brasileira está
vendo esse acolhimento de um governo federal. Como mulher negra, tenho que
reconhecer a oportunidade que estou tendo, porque sabemos como a vida é dura
para a gente. Vou fazer tudo para que dê certo".
DÍVIDAS COM A JUSTIÇA
O TCU detectou
irregularidades num convênio assinado, em 2010, entre a Associação
Fábrica Cultural, fundada por Margareth, e o MinC. Eram problemas como
prestação de contas e pagamentos por serviços não realizados. Em 2020, o TCU
condenou a organização a devolver R$ 338 mil ao governo. “Se eu tivesse dívida
com o TCU, não teria certidão negativa para exercer o cargo de ministra. A
situação aconteceu há 15 anos e não tenho ligação direta com o caso. Jamais
sofri qualquer condenação por parte do TCU”, respondeu a ministra quando
questionada sobre o caso. Ao GLOBO, o TCU informou não ter havido novos
desdobramentos do processo.
Assim que o nome de
Margareth foi anunciado, também veio à tona a dívida de R$1,1
milhão da cantora com a Receita Federal, valor que seria
referente a impostos não recolhidos por empresas responsáveis pela produção de
espetáculos e discos da artista. Margareth alega que as empresas tiveram
dívidas acentuadas na pandemia, mas que, com a volta das atividades, os
processos de regularização foram retomados em 2022 e as dívidas (que ela nega que sejam nesse valor) estão sendo pagas.
Procurada pelo GLOBO, a Receita Federal afirmou que, em razão do sigilo fiscal,
não se manifesta sobre situações de contribuintes.
SERTANEJOS BOLSONARISTAS
“O MinC está aberto a todos os
sertanejos. Não estamos aqui para perseguir nenhuma
manifestação cultural. Respeitamos a democracia, as diferenças. O que não é
possível é aceitar racismo, fascismo, nazismo. Mas, quanto às pessoas serem de
esquerda ou de direita, é isso aí. E tem sertanejo dos dois lados".
FUNDAÇÃO PALMARES
"Resgatar a Palmares da
destruição é importante. É a primeira conquista do povo negro brasileiro no
sentido de ter um núcleo que trate da memória e realize ações dentro do Estado
dirigida a essa reparação. Tudo isso foi destruído com o discurso absolutamente
racista. Precisamos entender que esse legado tem um valor na construção da
identidade nacional que compreende mais de 50% da população brasileira".
MARIO FRIAS NA
VICE-PRESIDÊNCIA DA COMISSÃO DA CULTURA DA CÂMARA DOS DEPUTADOS
"São coisas do Brasil,
infelizmente. Não estou interessada nesses assuntos menores. Nossa visão é
maior, de compreensão do valor da cultura do Brasil. Não estamos aqui para
perseguir ninguém, nem criar algum tipo de ideologia".
PATRIMÔNIO
"O presidente do IPHAN
tem retomado obras paradas. Estamos entrando seriamente na reforma do Palácio
Capanema, a intenção é entregá-lo até o fim do ano. Faremos bom uso desse lugar
maravilhoso. E existem tantos outros, como a Fundação Rui Barbosa, a Biblioteca
Nacional... Estamos remodelando tudo. Patrimônio também é grande fonte
econômica que podemos ativar. Muitos países exploram bem esse legado. A gente
vai para a Europa e vê grandes construções como memórias culturais. O que
aconteceu em Brasília em 8 de janeiro (a invasão ao Congresso)
foi assombroso, uma tentativa de golpe com fúria violenta destinada ao
patrimônio cultural do Brasil. Destruíram tesouros da História do Brasil. Não
entendem o valor disso. Queremos fortalecê-los de todas as maneiras possíveis,
como se faz na Europa. A gente não paga para entrar no Louvre? Tenho pensado em
contrapartidas mais positivas para o nosso patrimônio material e imaterial
também".
MISSÃO
"Nossa meta é deixar o ministério funcionando bem, com as políticas públicas acontecendo. Quando o presidente Lula me convidou, disse que queria o MinC para a cultura do Brasil se potencializar como vetor econômico. Quando isso começar a funcionar não vai ser mais tão necessário tantas ações de financiamento. A máquina se alimenta. O retorno econômico em lugares onde acontecem feiras e festas é fantástico. Basta ver o carnaval. Esse último, mesmo sendo o primeiro pós-pandemia, com poucas políticas públicas e sem ação do Ministério, foi um acontecimento. A cultura tem potencial incrível. E estou apostando nisso. Ficarei feliz se conseguirmos deixar esse organismo sadio".
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