TSE tem o dever de punir Bolsonaro e torná-lo inelegível
O Globo
Não faltam evidências de que ele usou
recursos públicos para tentar subverter a democracia
Passados 11 meses da reunião em Brasília
convocada por Jair Bolsonaro com
embaixadores para disseminar suas fantasias sem cabimento sobre as urnas
eletrônicas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE)
dará início nesta semana ao julgamento que poderá torná-lo inelegível. Em
representação feita pelo PDT, ele e o candidato a vice em sua chapa, Walter
Braga Netto, são acusados de abuso de poder político. Não faltam provas do que
aconteceu no Palácio da Alvorada em julho diante de diplomatas estrangeiros,
nem motivos para os ministros da Corte tornarem Bolsonaro e Braga Netto
inelegíveis por oito anos.
No encontro de cerca de 50 minutos, Bolsonaro tinha um objetivo evidente: desacreditar o sistema eleitoral brasileiro e o Judiciário junto ao eleitorado, para depois justificar a quebra da ordem democrática em caso de derrota nas urnas. Logo no início do discurso, afirmou que basearia sua argumentação num inquérito da Polícia Federal (PF) sobre uma suspeita de invasão dos sistemas do TSE. Declarou em seguida que as sugestões apresentadas pelas Forças Armadas na Comissão de Transparência Eleitoral (CTE) eram ignoradas, atacou integrantes do TSE e do Supremo Tribunal Federal (STF) e repetiu teses conspiratórias sobre as urnas eletrônicas.
Todas as 20 principais mentiras proferidas
por Bolsonaro na ocasião foram logo desmentidas. A tentativa de ataque ao TSE
não violou a segurança das urnas, mais de 70% das propostas foram acolhidas na
CTE, o ministro Edson Fachin nunca foi advogado do MST, e o ministro Luís
Roberto Barroso estava certo ao afirmar que o inquérito da PF citado por
Bolsonaro era sigiloso. Por tudo isso, não foi surpresa quando a
Procuradoria-Geral Eleitoral opinou pela procedência, ainda que parcial, da
ação do PDT.
A reunião no Alvorada diante do corpo
diplomático atônito não foi apenas um dos episódios mais vexatórios da História
nacional. Para os procuradores, as mentiras e distorções proferidas por
Bolsonaro elevaram a desconfiança das urnas eletrônicas no eleitorado. Foi o
caldo de cultura de onde brotaram as acusações infundadas de fraude em outubro,
as respostas violentas e a erosão da credibilidade da democracia.
Bolsonaro já recebeu a punição das urnas.
Foi o primeiro presidente no cargo a perder uma tentativa de reeleição, desde a
mudança na Constituição que a permitiu, em 1997. Agora chegou a vez do primeiro
castigo da Justiça. Ele é alvo de algo como 600 processos. O relativo à
apresentação aos embaixadores é apenas um, mas, ao menos no âmbito eleitoral,
não há dúvida de que houve violação. Bolsonaro usou as dependências do Alvorada
com o apoio de funcionários do Planalto e do Itamaraty. A saraivada de sandices
foi transmitida pela TV Brasil — uma rede pública — e nas redes sociais do
então presidente. Ao fazer isso, ele passou por cima de leis que proíbem o uso
indevido de imóveis e meios de comunicação da União em benefício de candidato,
além do emprego do poder para atingir objetivo estranho ao interesse público.
O discurso aos embaixadores não pode ser
justificado como dia infeliz, exceção ou resultado de confusão mental. Fez
parte de uma estratégia planejada e executada ao longo de anos, com o objetivo
de subverter a ordem democrática. Bolsonaro sabia exatamente o que fazia ao
chamar os embaixadores para o Alvorada. Por isso o TSE deve puni-lo, tornando-o
inelegível.
Municípios precisam de apoio federal para
planejar vacinação contra Covid
O Globo
Apenas 13% dos adultos tomaram reforço
bivalente. Desigualdades explicam baixa adesão, sugere estudo
Num país em que morreram mais de 700 mil na
pandemia de Covid-19, era de esperar grande procura pela vacinação e pelas
doses de reforço. Não é o que acontece no Brasil. Apenas 13% dos adultos que
tomaram uma, duas ou mais doses da vacina monovalente
foram receber a bivalente, atualizada para criar barreiras contra subvariantes
da Ômicron, cepa mais contagiosa do coronavírus.
O relaxamento em medidas de prevenção, como distanciamento e uso de máscaras,
torna a situação potencialmente perigosa.
Diversos motivos levam o brasileiro a não
voltar ao posto de saúde em busca de doses essenciais para se proteger — e para
manter a população com a cobertura vacinal adequada. Primeiro, o êxito das
vacinas diminui a sensação de risco. Por isso são essenciais campanhas
publicitárias de convencimento da população. Há, porém, outros fatores em jogo,
além da desinformação disseminada pelos grupos antivacina.
Disparidades econômicas e de
desenvolvimento têm impedido a universalização da vacinação, revelou pesquisa
recente dos epidemiologistas Alexandra e Antonio Boing, da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), em parceria com outros brasileiros e com o sanitarista
S.V. Subramanian, da Universidade Harvard. É esse o maior obstáculo que o
Programa Nacional de Imunizações (PNI) tem enfrentado, segundo reportagem do
GLOBO. “A Covid-19 é uma nova doença, com estratégia de vacinação muito
complexa”, diz a cientista política Lorena Barberia, da USP, coautora da
pesquisa. “O desafio vai além do Zé Gotinha.”
A complexidade da campanha contra a
Covid-19, com duas doses de vacinas e uma adicional de reforço, também ajudou a
reduzir a procura. Os pesquisadores notaram grande queda na terceira dose. Para
entender a questão, separaram os municípios de diferentes perfis em cinco
grupos de mesmo tamanho, de modo a poder compará-los. Aqueles com escolaridade
mais alta registraram cobertura vacinal de adultos 43% superior àqueles onde
ela era mais baixa. Nos com população mais branca, o reforço da vacina foi 24%
maior que nas cidades com maior proporção de negros. Cidades mais ricas se
saíram 21% melhor que as mais pobres. A cobertura vacinal entre mulheres foi
entre 25% e 118% mais alta que entre os homens.
O infectologista Eder Gatti, diretor do PNI, reconhece as dificuldades: “Uma das principais causas da queda da cobertura vacinal é o acesso à vacina, ao serviço de saúde, muito sensível a determinantes sociais”. Municípios estão recebendo ajuda do PNI para planejar a vacinação e desenvolver estratégias para que o serviço de saúde chegue ao não vacinado. Um dos recursos fundamentais é a busca ativa por quem deixou de tomar a vacina. É essencial o apoio do Ministério da Saúde às prefeituras para o país atingir uma cobertura vacinal mínima. Não só no enfrentamento da Covid-19.
Estudos questionam melhora do mercado de
trabalho
Valor Econômico
A existência de 67,2 milhões de pessoas
fora do mercado de trabalho é um indicador preocupante
Os dados positivos do mercado de trabalho
vêm contrariando as previsões de deterioração neste início de ano e intrigam os
especialistas. A mais recente taxa de desemprego informada pelo IBGE, referente
ao trimestre móvel terminado em abril, ficou em 8,5%, o menor percentual desde
os 8,4% de junho de 2015. É bem verdade que a economia também cresceu acima do
esperado neste início de ano. O Produto Interno Bruto (PIB) surpreendeu com
aumento de 1,9% no primeiro trimestre na comparação com os três meses
anteriores. Mas ele foi puxado pela arrancada de 21,6% da agropecuária, que
emprega pouca mão de obra, responsável pela geração de apenas 3,2% das vagas
criadas em 2022. Enquanto isso, o setor de serviços, o maior empregador, com
quase 60% do total, cresceu apenas 0,6%; e a indústria encolheu 0,1%.
Dois novos estudos lançam uma luz sobre
esse quadro. Um deles, do FGV Ibre, mostra a redução da taxa de participação no
mercado, liderada por jovens, menos escolarizados e de baixa renda. O outro, da
LCA, detalha que a maioria dos que deixaram a força de trabalho recebiam algum
benefício do governo. A elevação do Auxílio Brasil em 2022, renomeado de Bolsa
Família neste ano, teria influenciado os que deixaram de procurar emprego.
Segundo o FGV Ibre (Valor, 12/6), a queda na taxa
de participação no mercado de trabalho observada desde o último trimestre de
2022 pode estar atrapalhando as análises e sugerindo uma melhora que não está
ocorrendo em realidade. A taxa de participação mostra quanto da população em
idade de trabalhar, ou seja, da força de trabalho, está ocupada ou buscando
emprego.
Depois do pico de 63,8% em 2019, a taxa de
participação foi de 63,4% antes da pandemia, em fevereiro de 2020, e despencou
para 56,7% no trimestre terminado em julho daquele ano, quando muitos
desistiram de procurar emprego pela certeza de que não encontrariam em
consequência do isolamento social. A taxa se recuperou com a flexibilização do
distanciamento, com a retomada dos serviços presenciais, que emprega mais mão
de obra, e atingiu 62,7% em setembro de 2022. Mas, voltou a cair desde então, e
marcou 61,4% no trimestre móvel terminado em abril.
A queda na taxa de participação pode
indicar taxa de desemprego menor sem que o mercado esteja efetivamente melhor
caso o número de pessoas ocupadas esteja estável e diminua o percentual dos que
buscam emprego. Pode ser o que está acontecendo agora, de acordo com os
pesquisadores do FGV Ibre. Se a taxa de participação estivesse no patamar médio
verificado em 2018 a 2019, de 63,4%, com 3,4 milhões de trabalhadores buscando
trabalho, o desemprego seria, na verdade, de 11,4%.
Para reforçar argumento, os especialistas
do FGV Ibre chamam a atenção para a queda do nível de ocupação, medido pela
relação entre a população ocupada e a em idade de trabalhar. O nível de
ocupação está em queda desde o terceiro trimestre de 2022, quando estava em
57,2%. O pico dessa taxa é de 58,5%, registrado em 2013. Durante a pandemia,
chegou a cair para 48,5% entre junho e agosto de 2020.
Na pesquisa da FGV Ibre, as pessoas de
baixa escolaridade e de faixas de renda menor foram as que mais deixaram o
mercado. A saída mais intensa desses grupos, registrada principalmente a partir
do fim de 2022, pode estar ligada ao aumento do valor real do Bolsa Família,
apontam.
A suspeita é reforçada pelo estudo da LCA.
Avaliando dados da Pnad Contínua Anual 2022, a LCA constatou que três em cada
dez pessoas que deixaram a força de trabalho em 2022 recebiam o Auxílio Brasil,
quatro tinham aposentadoria ou BPC/Loas, e outros três não recebiam outro tipo
de rendimento. Para a consultoria, o aumento do Auxílio Brasil às vésperas das
eleições e os registros irregulares feito às pressas no Cadastro Único
estimularam a saída do mercado de trabalho. Isso ficou evidente na explosão do
número das famílias unipessoais.
Pode estar relacionado a esse fenômeno o
aumento do percentual dos jovens que nem estudam nem trabalham, verificado
recentemente. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad)
Contínua Educação 2022 do IBGE mostram que 20% dos jovens entre 15 e 29 anos
está fora da sala de aula e do mercado de trabalho, ou seja, 9,8 milhões do
total de 49 milhões de jovens dessa faixa etária.
Há também especialistas que veem na
demografia a explicação para esse quadro em que a demanda por emprego não
cresceu como costuma ocorrer em início de ano, ao mesmo tempo em que houve
estabilidade no número de desempregados, aumento da população fora da força de
trabalho e queda no número de desalentados - aqueles que nem procuram vaga porque
acham que não terão sucesso.
Os próximos meses deverão fornecer mais
informações que vão contribuir para esclarecer o quadro. A existência de 67,2
milhões de pessoas fora do mercado de trabalho é um indicador preocupante: são
38,5% do total de 174,4 milhões da força de trabalho. A situação tem
repercussões na educação e na produtividade. O diagnóstico correto pode levar
também à melhor calibragem dos programas de benefícios à população.
Quase estagnado
Folha de S. Paulo
Estado precisa do setor privado para
diminuir déficit vexatório no saneamento
Para um país de renda média, o Brasil tem
níveis escabrosamente baixos de saneamento básico. Os avanços, quando os há,
são mínimos e lentos, como indica a última edição da Pnad Contínua do IBGE.
Pela estreita ligação com a saúde pública e
a preservação ambiental, a coleta e o tratamento de esgoto representam o
indicador mais óbvio do serviço. E o dado colhido na pesquisa é de
acabrunhar: em 2022,
apenas 69,5% dos domicílios estão ligados à rede coletora.
Houve progresso, verdade. Ínfimo: em 2019,
eram 68,2%. Em quatro anos, o incremento foi de mero 1,3 ponto percentual.
Nesse ritmo, seriam necessários 63 anos para alcançar a universalização (90%)
estipulada para 2033.
Coletar não significa tratar os dejetos,
como seria racional —é desvio perverso recolher sujidades para lançá-las in
natura em rios ou no mar. A ausência de tratamento afeta 18% do esgoto
recolhido; somado ao que nem chega aos tubulões, estima-se que até 45% do total
produzido acabe poluindo corpos d’água.
Os números dão boa medida do fracasso do
Estado brasileiro no fornecimento desse serviço público essencial. O modelo que
por aqui vingou tem empresas estatais como provedor predominante, mas
municípios detêm o poder de concessão e, em muitos casos, a operação por
concessionárias privadas tem dado bons resultados.
De todo modo, o poder público ainda se
mostra incapaz de fazer investimentos de modo racional, no montante e na
rapidez necessários para apagar a nódoa civilizatória que envergonha o país.
O panorama começou a mudar a partir da
aprovação de novo marco legal do saneamento em 2020. Com mais oportunidades
para a atuação de empresas particulares, novos investimentos chegaram.
Estima-se que os recursos públicos e
privados possam ultrapassar R$ 24 bilhões neste ano —o que representa apenas um
terço dos R$ 74 bilhões necessários até 2033 para lograr a universalização,
segundo uma estimativa do setor.
A meta sofreu abalo com decretos do
governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que alteraram regras do marco legal,
reabrindo vantagens para estatais. Entre elas, a Empresa Baiana de Águas e
Saneamento, que escaparia de licitação para prover o serviço em Salvador, fonte
de 40% de seu faturamento.
Em boa hora, a Câmara dos Deputados
derrubou as mudanças de inspiração estatizante da gestão petista. As medidas se
acham agora sob exame do Senado, e o Planalto já negocia novo decreto com tom
contemporizador.
Que se apresse. Não há desculpa para
procrastinar o fornecimento de um serviço que, segundo a ONU, é direito humano
universal.
Corrida ao bônus
Folha de S. Paulo
Disputa de categorias por benesse ameaça
aprofundar distorções do funcionalismo
Na elite do serviço público, as categorias
comparam entre si condições de trabalho, remuneração e regalias, de modo que
qualquer vantagem concedida a uma delas de pronto suscita pleitos das demais.
É o que se vê agora em Brasília depois que
o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou
decreto para enfim regulamentar um controverso bônus de
eficiência para servidores da Receita Federal, fixado em lei seis anos atrás.
A benesse destinada a analistas e auditores
fiscais já é inspirada em honorários pagos a advogados da União e procuradores
da Fazenda Nacional —e é tida como meio de compensar supostas defasagens
salariais em relação aos fiscos dos governos estaduais.
Agora, as corporações
de Banco Central, Tesouro Nacional e Controladoria-Geral da União reclamam mais
ganhos. Em outra frente, funcionários do Instituto Nacional do
Seguro Social (INSS) e peritos médicos reivindicam a retomada de um extra para
a redução da fila por benefícios previdenciários.
Os valores envolvidos estão fora da
realidade da grande maioria dos trabalhadores do país. Com o reajuste salarial
linear de 9% concedido neste ano ao funcionalismo federal, um auditor da
Receita tem vencimento básico de R$ 22,9 mil mensais no início da carreira e de
R$ 29,8 mil no topo.
A essas cifras se somam hoje R$ 3.000 em
bônus —que, sim, são pagos a todos, independentemente do desempenho. Com a
regulamentação, o adicional será elevado; menos certo é que critério haverá
para sua concessão.
Para além do risco de provocar uma corrida
por privilégios injustificados, há que evitar, nesse caso, que o prêmio por
produtividade incentive uma ofensiva de auditores contra os pagadores de
impostos, ainda mais num momento em que o governo Lula busca um grande aumento
de arrecadação.
Nesse sentido, é bem-vindo o dispositivo
que impede o cálculo do bônus sobre recursos obtidos por meio de multas
tributárias. Entretanto o vício de origem do adicional é ter sido criado a
partir de uma demanda corporativista, não de um programa de produtividade.
O objetivo de melhorar a eficiência do serviço público deveria incluir uma reforma administrativa capaz de racionalizar a estrutura de carreiras, reduzir vencimentos iniciais e limitar o alcance atualmente exagerado da estabilidade do funcionalismo. Sem ela, distorções tendem a se aprofundar.
Os golpistas e os republicanos
O Estado de S. Paulo
Investigação sobre o ex-ajudante de ordens
de Bolsonaro mostra que militares de fato tramavam levante, que só não
aconteceu porque golpistas sabiam não ter apoio do Alto Comando
As Forças Armadas não exercem um “poder moderador” na República nem muito menos o Exército é tutor da democracia no País. É inegável, porém, que um golpe de Estado para impedir a posse de Lula da Silva, eleito legitimamente para a Presidência da República, só não foi tentado após a derrota de Jair Bolsonaro na eleição, entre outras razões, por causa da firmeza do Alto Comando do Exército em não se desviar um milímetro sequer dos papéis e responsabilidades impostos aos militares pela Constituição.
Assim já parecia pela prevalência da ala
legalista da Força Terrestre sobre os golpistas durante os quatro anos do
tenebroso mandato de Bolsonaro. Por mais irresistível que tenha sido o canto
liberticida do ex-presidente aos ouvidos de militares recalcitrantes em aceitar
a ordem constitucional de 1988, o Exército, como instituição de Estado,
permanente, jamais emitiu sinal de que o apoiaria em suas loucuras. Há poucos
dias, isso ficou evidente após a revelação, pela revista Veja, do chamado
“roteiro do golpe” – documento apócrifo enumerando uma espécie de checklist da
sedição – encontrado pela Polícia Federal (PF) no celular do tenente-coronel
Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, atualmente preso no Batalhão de
Polícia do Exército, em Brasília.
O documento apreendido pela PF no celular
de Mauro Cid mostra o desassombro com que militares no entorno de Bolsonaro,
entre os quais alguns comandantes de tropas, urdiram um golpe contra a
supremacia da vontade popular. Não fosse tudo isso muito grave, seria risível o
discurso falacioso dos golpistas em pintar um golpe contra a Constituição com
as tintas desbotadas de uma legalidade de fancaria a pretexto de “defendê-la”.
A audácia do bando, para o bem da
democracia no Brasil, ficou circunscrita às conversas num grupo de WhatsApp
intitulado “Doss”. Jamais ganhou as ruas em razão do medo dos sediciosos de
serem punidos pelo Alto Comando. As conversas revelam que a não adesão da
cúpula do Exército aos desígnios golpistas de militares que não valem as solas
do coturno que calçam foi o fator dissuasório principal para que a intentona
não fosse adiante. Um dos golpistas, o tenentecoronel Hélio Ferreira Lima,
chega a lamentar expressamente a baixa adesão de seus superiores às tramoias.
“Salário garantido, guerreiro com certeza absoluta de não guerrear. Ficou bom
demais para querermos sair desse conforto. Não vai rolar”, escreveu ele, como
“desabafo” pela atitude do Alto Comando em se manter fiel à Constituição.
“Como instituição de Estado apartidária, o
Exército prima sempre pela legalidade e pelo respeito aos preceitos
constitucionais”, disse o comando da Força Terrestre por meio de nota. “Os
fatos recentes (a divulgação da tramoia golpista entre Cid e outros oficiais)
somente ratificam e comprovam a atitude legalista do Exército de Caxias”,
conclui o documento. De fato, como instituição permanente que é, o Exército
jamais deu a entender que extrapolaria suas atribuições constitucionais ou se
lançaria numa aventura golpista, menos ainda por um desqualificado como
Bolsonaro. A Força sempre se manteve em seu lugar, vale dizer, ao lado da
Constituição, malgrado o fato inescapável de que no seio da caserna há
militares golpistas.
De fato, as ações que o Exército tem tomado
desde que o envolvimento de militares da ativa na tentativa de golpe começaram
a vir a público não dão margem para que a sociedade duvide da disposição da
Força Terrestre para lidar com os sediciosos de maneira implacável. E isso, em
alguns casos, pode significar deixá-los a cargo da PF e da Justiça civil para
que respondam pelos eventuais crimes comuns que tenham cometido.
Uma tentativa de golpe de Estado implica
gravíssimas consequências. Sobre cada indivíduo, civil ou militar, da ativa ou
da reserva, que atentou contra a Constituição deve recair o peso das leis, na
medida de sua responsabilidade. É assim que funciona no Estado Democrático de
Direito e é assim que a democracia se defende de seus algozes.
O caso Americanas e a credibilidade do
mercado
O Estado de S. Paulo
Cabe à CVM fazer deste caso um paradigma,
não para que seja temida como a americana SEC, mas para preservar a fiabilidade
do setor varejista e do mercado de capitais
Em documento enviado à Comissão de Valores
Mobiliários (CVM), a Americanas finalmente admitiu a existência de fraudes em
suas demonstrações financeiras. Desde que o então presidente da companhia,
Sérgio Rial, informou ter encontrado o que seriam “inconsistências contábeis” da
ordem de R$ 20 bilhões, em janeiro, a dimensão do escândalo envolvendo a
companhia só cresceu.
Passaram-se cinco meses desde a denúncia de
Rial e a admissão, pela Americanas, de que seus balanços não tinham qualquer
confiabilidade. Disso já se desconfiava, mas a novidade é que o rombo contábil
teria chegado à marca de R$ 42 bilhões, mais que o dobro do inicialmente
estimado. Além disso, a Americanas deu nome aos bois e acusou membros da antiga
diretoria, os Bancos Itaú e Santander e a KPMG e a PwC, empresas que auditavam
suas demonstrações financeiras. Sugeriu, ainda, que elas vinham ocorrendo havia
nada menos que duas décadas e que os números definitivos só serão conhecidos
após a revisão de todos esses balanços.
Tudo nessa história é estranho desde o
início. Rial teria descoberto e divulgado as suspeitas apenas nove dias após
assumir formalmente o cargo, ao qual renunciou em seguida. O rombo,
inicialmente, seria fruto de dívidas da empresa com bancos em operações de
risco sacado, lançadas de forma fraudulenta para aumentar seu caixa e
subestimar o nível de endividamento da empresa. Agora, o fato relevante mostra
que o esquema de fraudes era bem maior. Incluía,
também, contratos de verbas de propaganda
cooperada fictícios que inflavam os resultados da empresa, garantindo lucros
artificiais, bônus aos executivos e dividendos aos acionistas.
O documento chama a atenção por muitas
outras razões. Ao mesmo tempo que acusa nominalmente sete ex-diretores, além de
bancos e empresas de auditoria, ele poupa os membros do Conselho de
Administração da Americanas e o trio de acionistas de referência, Beto
Sicupira, Jorge Paulo Lehmann e Marcel Telles, de qualquer responsabilidade
pela fraude. Tampouco parece acaso que ele tenha sido divulgado na véspera do
depoimento do atual CEO da companhia, Leonardo Coelho Pereira, à Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados sobre o caso. Na
comissão, ele reiterou o teor do documento, disse ter demitido 30 funcionários
e compartilhou o relatório com membros da CPI e CVM, além da Polícia Federal e
do Ministério Público.
Somente uma apuração rigorosa poderá dizer
se o fato relevante elucida tudo o que ocorria na Americanas com exatidão. Por
isso mesmo, o documento deve servir como ponto de partida para as
investigações. Elas devem avançar, e não tomar o relatório interno como
conclusivo. Ninguém melhor para fazê-lo com acurácia do que a CVM. É bem
verdade que a comissão, há anos, tem sido criticada pelo exato oposto – pela
lentidão e pela omissão, sobretudo em casos de informações privilegiadas. Mas
eis que surge uma oportunidade única para mudar essa imagem.
Para se fortalecer enquanto órgão
regulador, a CVM deve ser dotada de recursos e pessoal, de forma a assegurar o
cumprimento de seu papel de disciplinar e fiscalizar o mercado de valores
mobiliários. Porém, ao mesmo tempo que deve ser vigilante, o órgão não deve se
deixar envolver pelo clima de punitivismo que tanto mal já fez ao País. A CVM,
em resumo, deve começar a cumprir os termos da legislação que a criou.
Cabe à CVM, portanto, fazer do caso
Americanas um paradigma, não para que seja temida como a similar norteamericana
Securities and Exchange Commission (SEC), mas para que sua atuação contribua
para resgatar a credibilidade do setor varejista e do mercado de capitais,
profundamente abalada.
Não há como o País desenvolver um ambiente
confiável aos investidores quando uma de suas maiores empresas age para
ludibriar a todos por tanto tempo. Milhões de acionistas minoritários, guiados
por números que julgam ser verdadeiros, aplicam suas economias e patrimônio em
companhias abertas. É crucial que a CVM seja firme agora, para que casos dessa
magnitude jamais voltem a acontecer.
Mais 19 milhões de refugiados
O Estado de S. Paulo
Guerra na Ucrânia, com seus 11,6 milhões,
responde pela maioria dos deslocados de 2022
Parte dos efeitos de guerras e perseguições
tem sido refletida nas estatísticas anuais divulgadas pela Agência das Nações
Unidas para os Refugiados (Acnur). Os dados de 2022, conhecidos no último dia
16, não poderiam ser mais dramáticos. O número de pessoas deslocadas de seus
locais de origem aumentou em 19 milhões nesse período, o que elevou a
estimativa dos que vivem nessa condição a 108 milhões. Para ter uma dimensão,
esse universo equivale à população dos Países Baixos.
Esse contexto desafia o arcabouço
internacional de direitos humanos construído nos últimos 70 anos e expõe um
dado ainda mais grave. Segundo o relatório da Acnur Tendências Globais,
elaborado com base nas estatísticas anuais fornecidas pelos países das Nações
Unidas, 40% dos 108 milhões de deslocados são compostos por crianças, grupo
mais suscetível à violência extrema. Elas somam 43,2 milhões.
Segundo a estimativa da Acnur, 62,5 milhões
de pessoas foram obrigadas a se deslocar dentro de seus próprios países,
enquanto 35,3 milhões refugiaram-se no exterior, sobretudo em países vizinhos,
a maioria deles tão pobres como os de origem. Outros 5,4 milhões de pessoas
solicitaram a autoridades estrangeiras o status de refugiado – grupo que
aumentou em 2,6 milhões somente em 2022.
O quadro de 2022 mostrou-se afetado
sensivelmente por velhos conflitos na África e no Oriente Médio, somados a
outros recentes, como o da Ucrânia. Também evidenciou as terríveis condições de
sobrevivência em países submetidos a regimes autoritários, como a Venezuela, e
naqueles em que há perseguições continuadas contra minorias étnicas,
religiosas, de gênero e orientação sexual, como Afeganistão e Mianmar.
A guerra da Rússia contra a Ucrânia
respondeu por 61% dos 19 milhões de deslocados em 2022. Os ucranianos forçados
a fugir de seus lugares de origem somaram 11,6 milhões, dos quais 5,9 milhões
se mudaram para outras regiões do país. A parcela de 5,7 milhões restantes
procurou abrigo no exterior, sobretudo na Polônia e na República Checa. Nas
Américas, o total de deslocados cresceu 17% em 2022 ante o ano anterior.
É importante ressaltar que os números da
Acnur refletem as histórias de busca pela sobrevivência que tiveram o desfecho
esperado. Os 108 milhões de deslocados alcançaram um local onde a vida é
possível. Nem sempre é assim. O naufrágio de embarcação de pesca precária e
sobrecarregada de migrantes na costa da Grécia, no último dia 14, faz parte de
uma série de tragédias que tornaram o Mediterrâneo um “mar da morte”. Deixou 79
mortos.
Ao comentar o relatório, o alto comissário das Nações Unidas para Refugiados, Filippo Grandi, afirmou o óbvio: faz-se necessário um maior esforço para selar a paz e impedir que novas guerras venham a ocorrer, ou então não haverá chances de regresso. As estimativas da Acnur para 2023, porém, já consideram conflitos para os quais não há esperança de solução em breve. A agência prevê mais 35,4 milhões de deslocados neste ano. Parte deles, certamente, sem esperanças de voltar ao lar.
Norte-Sul, os trilhos estão de volta
Correio Braziliense
Considerado o maior especialista do
pós-Segunda Guerra Mundial, faz um diagnóstico preciso da decadência das
ferrovias a partir da década de 1950
O historiador inglês Tony Judt, que faleceu
em 2010, aos 62 anos, dedicou dois ensaios ao tema das ferrovias, publicados
postumamente, no livro Quando os fatos mudam. Considerado o maior especialista
do pós-Segunda Guerra Mundial, faz um diagnóstico preciso da decadência das
ferrovias a partir da década de 1950: "A cidade moderna havia nascido a
partir do transporte sobre trilhos (….) Mas, ao tirar as pessoas do campo e
jogá-las na cidade, ao drenar a área rural de comunidades, povoados e
trabalhadores, o trem tinha começado a destruir sua própria razão de ser: o
movimento das pessoas entre as cidades e de distantes distritos rurais para
centros urbanos".
Para ele, no ensaio Tragam os trilhos de
volta, o grande propiciador da urbanização acabou sendo uma vítima desse mesmo
processo. "Com as viagens obrigatórias muito longas ou muito curtas, fazia
mais sentido realizá-las de avião ou de carro. Mesmo o transporte de cargas
estava sendo ameaçado pelo baixo custo do serviço oferecido pelos caminhões,
apoiado pelo Estado na forma de autoestradas", avaliava.
Por todo lugar, as ferrovias foram vítimas
de uma dupla falta de fé: nos benefícios proporcionados pelos serviços
públicos; e no planejamento urbano, no espaço público e patrimônio
arquitetônico e cultural. "Entre 1955 e 1975, um misto de modismo
anti-histórico e egoísmo corporativo levou à destruição de um notável número de
estações terminais, algumas espetaculares, como o Euston (Londres), Gare du
Midi (Bruxelas), Penn Station (Nova York)".
Judt morreu em 2010 e deixou um
livro-testamento chamado O Chalé da Memória, no qual conta como, menino, pegava
trens em Londres e ia de um lado a outro do país, vendo as paisagens,
encontrando as pessoas.
No Brasil, a fabulosa malha ferroviária que
interligava o país foi destruída. Talvez o maior símbolo de abandono seja a
estação central da antiga Estrada de Ferro Leopoldina, no Rio, um patrimônio
arruinado. Aqui em Brasília, o destino dado à funcional e modernista
Rodoferroviária, na qual deságua o Eixo Monumental, só não é igual porque,
ironicamente, lhe foi atribuída a função pública de cuidar da habilitação dos
motoristas.
Qualquer urbanista nos dirá que o futuro de
Brasília e seu entorno ainda pode ser muito diferente, se o projeto de trem
rápido nos ligando à Goiânia e à Anápolis sair do papel. O Distrito Federal e
Goiás abrigariam a mais moderna e progressista megalópole do país. Seus trilhos
poderiam transportar milhões de toneladas de mercadorias e passageiros, como a
Vitória-Minas.
Entretanto, não percamos as esperanças no
brado de Tony Judt. Na sexta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
inaugurou a ligação ferroviária entre os portos de Itaqui, no Maranhão, e
Santos, em São Paulo. Depois de mais de 30 anos, a Ferrovia Norte-Sul se tornou
realidade. Vai acelerar o desenvolvimento da região Centro-Oeste.
Com o Terminal da Rumo de Rio Verde (GO), a
ferrovia completa 2.257 quilômetros e atravessa quatro regiões. Com forte
produção de commodities — como soja, milho e algodão —, Goiás, Mato Grosso e
Minas Gerais se conectam mais intensamente, pelo Sudeste e pelo Norte, com a
economia global.
Iniciada em 1986, a Ferrovia Norte Sul foi
uma ousadia do então presidente José Sarney, que enxergou muito mais longe,
porém, chegou a ser até ridicularizado. Ganhou impulso quando o Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), no segundo mandato de Lula, então a cargo da
ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, virou realidade. No seu governo, a ex-presidente
apostou na parceria público-privada.
O trecho de Açailândia (MA) a Porto
Nacional (TO) é operado pela VLI Logística. A partir de 2019, a operadora
logística Rumo passou a gerir o ramo Sul do empreendimento, com 1.537
quilômetros de trilhos. No governo Bolsonaro, construiu novos terminais em São
Simão, Rio Verde e Iturama.
Nesse período, a empresa investiu R$ 4 bilhões em obras de infraestrutura, terminais e material rodante. Mais de 5 mil empregos foram criados. Só em 2022, cerca de 7,8 milhões de toneladas de soja, milho e farelo foram transportadas pelos novos trechos da ferrovia, o que representou um aumento de 25% do total exportado por Goiás, nosso vizinho, em comparação aos anos anteriores.
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