O Globo
Universidade precisa resgatar a confiança da
parcela da população que é de direita
No último domingo, coordenei com meu colega Marcio Moretto uma pesquisa sobre os bolsonaristas mobilizados na Avenida Paulista. Medimos o tamanho da manifestação com fotos aéreas de drone, depois contamos os manifestantes com um software de inteligência artificial (IA). Com nossa equipe, realizamos 575 entrevistas investigando a demografia, a identidade política e a opinião dos manifestantes sobre uma série de questões políticas. Publicamos todos os resultados aqui no GLOBO. O trabalho deveria ser uma pesquisa acadêmica, distanciada, na medida do possível. Mas, como tratamos de temas políticos contemporâneos, fomos rapidamente tragados para o centro do debate político. Queria repartir aqui algumas reflexões sobre as dificuldades de fazer ciência social e divulgá-la num ambiente político carregado e polarizado.
O primeiro resultado que divulgamos foi a
estimativa do tamanho da multidão na Paulista. Fazemos essas estimativas com
software de IA treinado para contar manifestantes com fotos aéreas nas
condições brasileiras. É um método que tem suas limitações. A gente não conta
quem está embaixo de árvores e marquises e não consegue capturar o fluxo de
quem entra e sai da manifestação. Além disso, o software não reconhece todas as
pessoas, contando um pouco a mais e um pouco a menos — o que se chama,
tecnicamente, de precisão e acurácia. Ele pode não reconhecer uma cabeça porque
a pessoa está de boné e achar que um cone na rua é uma cabeça. No final,
somando essas imprecisões, chegamos a uma margem de erro de 12%, para mais ou
para menos.
Nossa estimativa de 185 mil pessoas, às 15h,
era um número excepcionalmente alto. Fizemos questão de ressaltar isso,
listando todas as outras medições que já fizemos e mostrando ser o maior número
que havíamos encontrado numa manifestação no Brasil em dois anos. Era mais de o
triplo da celebração da eleição de Lula na Paulista em 2022. Isso deveria ser
boa notícia para a direita, mas setores desse campo político reagiram ao número
atacando a USP, a universidade a que nos filiamos.
Os ataques se devem, fundamentalmente, à
falta de confiança da direita na universidade. Embora tenhamos enfatizado que
185 mil pessoas era, comparativamente, um número muito elevado, a Polícia
Militar deu uma estimativa muito maior: 750 mil pessoas. A PM
aparentemente usou uma medição da área do protesto e a multiplicou por uma
densidade estimada (quantas pessoas, aproximadamente, achava que havia por
metro quadrado). É um jeito mais grosseiro de estimar que o nosso — e, a meu
juízo, um número inverossímil. Mas não é a divergência metodológica o
importante aqui. Importa que esses números muito divergentes — um produzido
pela PM, que a direita adora, e outro, pela universidade, que detesta — levaram
a uma campanha de ataque à universidade.
Márcio e eu, os coordenadores da pesquisa,
temos posição política — como todos os cidadãos brasileiros. Márcio é diretor
do sindicato e eu, além de professor e pesquisador, sou colunista de opinião
aqui no GLOBO, onde tento articular uma visão independente de esquerda.
Não deveria haver problema em sermos de
esquerda e fazermos ciência social — assim como não deveria ser um problema eu
ser de esquerda e escrever no jornal. O GLOBO, como todos os jornais sérios,
separa a reportagem, onde se determinam os fatos, das opiniões políticas,
expressas nas colunas. O jornal tem colunistas de esquerda, como eu, e outros
mais de direita, como meu colega de sábado, Eduardo Affonso. Essa pluralidade
existe para ajudar leitores, das duas orientações, a interpretar os fatos
trazidos pela reportagem.
Na ciência social, a orientação política tem
impacto na pesquisa, mas não deveria jamais distorcer os resultados. A visão de
mundo de quem conduz a pesquisa certamente condiciona a agenda de pesquisa e a
abordagem das questões sociais — por isso defendo que tenhamos mais
pesquisadores conservadores. Porém, como cientistas sociais sérios, nos
esforçamos muito para nossas opiniões não distorcerem os resultados. Nosso
objetivo não é desqualificar as mobilizações sociais que estudamos, mas
compreendê-las. Se baixamos uma estimativa de público ou distorcemos a
caracterização do público, é nossa compreensão que sai prejudicada.
A falta de confiança na universidade é um
tema que me preocupa. Muitos colegas professores acham que eu não deveria
perder meu tempo dando satisfações à direita. Penso o contrário. Acredito que a
universidade precisa resgatar a confiança da parcela da população que é de
direita e que faz parte da cidadania que nos financia. É um compromisso
republicano.
A democracia brasileira passa por um momento
delicado. Se o antagonismo a que assistimos continuar escalando, terminaremos
em autoritarismo e violência. Não temos saída nesta democracia se não
aprendermos a conviver, com respeito.
4 comentários:
Excelente!
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