sábado, 2 de março de 2024

Demétrio Magnoli - Mutualismo na Paulista

Folha de S. Paulo

A manifestação promovida por Bolsonaro deve ser definida como um ato de chantagem

Mutualismo, em biologia, é a relação simbiótica entre diferentes espécies na qual cada uma delas extrai benefícios. Na Paulista, domingo passado, Bolsonaro e seus aliados –Tarcísio de Freitas, Romeu Zema e Ronaldo Caiado, potenciais candidatos presidenciais– exercitaram o mutualismo. Bolsonaro conseguiu exibir-se como líder da direita. Os aliados sem princípios marcaram pontos junto ao eleitorado do ex-presidente.

A manifestação deve ser definida como um ato de chantagem. A eficiente demonstração de força popular não teve nenhum outro objetivo político senão pressionar o Congresso e o Judiciário a aceitarem uma barganha indecente. Bolsonaro ofereceu "pacificação" e "conciliação" em troca da impunidade para ele e seu cortejo, acrescida pelo perdão aos soldadinhos idiotas do 8 de janeiro.

Malafaia, o mestre de cerimônia, cumpriu um papel ensaiado, falando duro para acentuar o contraste com a fala mansa de Bolsonaro. Talvez imagine saltar de vez da esfera religiosa à política, como sucessor do golpista inelegível. Michelle, a pregadora, rompeu explicitamente a barreira que separa a religião da política, invocando o nome de Deus para obter ganhos bem terrenos. Os evangélicos já têm uma profeta charlatã. Tarcísio, Zema e Caiado, além do secundário Ricardo Nunes, limitaram-se a posar para as câmeras, expondo a matéria de que são feitos.

Eles são feitos, exclusivamente, de oportunismo eleitoral. Quando perfilam ao lado de Bolsonaro, evidenciam seu desprezo pela democracia. De que adianta jurarem amor eterno à pluralidade política e ao sistema eleitoral se emprestam um guarda-chuva ao protagonista de uma tentativa de golpe de Estado?

Um estudo conduzido por cientistas de Yale provou que uma relação mutualista entre vírus e bactérias pode derivar de uma relação originalmente parasitária. Eles mostraram que o comportamento das espécies apresenta vasta elasticidade, o que pode incluir rápidas alternâncias entre parasitismo e mutualismo. A Paulista indica que a conclusão vale, também, no universo da política.

Antes, os três governadores e o prefeito parasitavam Bolsonaro, mantendo prudente distância enquanto recolhiam votos em sua base eleitoral. Hoje, no cenário em que o golpista encontra-se sitiado pelo avanço das investigações, estabeleceu-se uma relação de mútuo benefício. Em troca de votos potenciais, os aliados tornaram-se fiadores do subversivo que almejava lançar as Forças Armadas na aventura da virada de mesa. A coluna vertebral deles nunca mais ficará ereta.

Lideranças que colocam o interesse público à frente do cálculo de vantagens circunstanciais são pérolas raras. Daí, a importância de instituições sólidas e regras bem desenhadas. No caso da Paulista, a devassidão moral dos fiadores de Bolsonaro não explica tudo. Atrás da relação de mutualismo que estabeleceram encontra-se a prerrogativa da Justiça Eleitoral de, anulando a vontade dos eleitores, decidir quem tem o direito de disputar eleições.

Democracias menos imperfeitas não cassam direitos políticos quase em nenhum caso. Por aqui, declara-se inelegibilidade a rodo. Lula foi vítima da supremacia dos juízes eleitores. Agora, é a vez de Bolsonaro. O que conseguiram é transformá-lo em Grande Eleitor, poupando-o do embate político na arena eleitoral. Ao mesmo tempo, libertaram as lideranças da direita da necessidade de marcar suas diferenças com o chefe golpista.

Sem a inelegibilidade, os potenciais candidatos da direita precisariam confrontar a pré-candidatura de Bolsonaro para viabilizar suas pretensões presidenciais. Mesmo a contragosto, teriam que falar sobre a trama cívico-militar bolsonarista contra o sistema eleitoral. Mas os juízes soberanos evitaram uma cisão capaz de isolar a facção subversiva. A missa profana na Paulista foi uma oferenda do TSE ao inimigo da democracia.

 

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