Valor Econômico
No seu formato desmedido atual, as emendas
deixam os congressistas com muito dinheiro para distribuir às suas bases locais
sem ficarem mais responsáveis pelos acertos e erros do Estado
A democracia brasileira tem como uma das suas
principais qualidades a divisão de Poderes, que evita a concentração de poder
em uma pessoa ou instituição. Isso é garantido pelo controle mútuo entre
Executivo, Legislativo e Judiciário, algo que ocorre, em certa medida, também
entre os entes federativos. Bolsonaro não foi adiante em seu projeto de golpe
do Estado, em parte, porque houve freios institucionais. Mas o caráter
consociativo do presidencialismo brasileiro acentuou recentemente um efeito
colateral: o Congresso Nacional se fortaleceu sem que aumentasse a
responsabilidade por suas decisões.
É sempre importante louvar a independência do
Congresso Nacional num país marcado por regimes autoritários. A ditadura
militar fechou algumas vezes o Legislativo e cassou seus membros que não
aceitavam se submeter a governantes autocráticos. A redemocratização mudou esse
cenário trágico, produzindo uma Constituição que fortaleceu as funções
congressuais no processo decisório e no controle do presidente da República.
Reduzir o papel congressual a carimbador do Executivo não é um bom caminho para a democracia brasileira. Vários grupos de eleitores podem ser representados no Legislativo. Ainda bem que a direita, o centro e a esquerda podem ter lugar no debate legislativo, contanto que sigam os parâmetros democráticos. O Congresso Nacional, ademais, é uma Casa que pode receber diversas parcelas da sociedade brasileira para discutirem o futuro do país. No momento, está sendo debatido o Plano Nacional de Educação (PNE), que criará metas para os próximos dez anos a um dos temas mais importantes do Brasil. Imagine se tal questão não tivesse um Legislativo aberto ao confronto de ideias e à construção de compromissos entre os opostos. Com certeza, as decisões seriam piores e menos representativas.
No entanto, junto com o poder devem vir as
responsabilidades. No sistema presidencial, embora os Poderes sejam divididos,
todos são partícipes, para o bem e para o mal, da definição das políticas
públicas e corresponsáveis por elas. Óbvio que quem está no governo pode ser
mais cobrado, mas o novo poder congressual gerou uma enorme capacidade de
contrabalançar as propostas do Executivo, para além da divisão entre situação e
oposição. Em outras palavras, os eleitores esperam não só que os deputados e
senadores os representem, mas que eles sejam capazes de encontrar soluções para
o Brasil, pensando no interesse público.
A passagem da representação do eleitoral
particular de um parlamentar, ou mesmo de um partido, para o interesse público
não é um trajeto simples em nenhuma democracia do mundo. Em momentos em que
abraça uma grande causa social, nas situações de enfrentamento corajoso a um
governante que procura exorbitar seu poder, ou quando é capaz de fazer mudanças
profundas e que desagradam a grupos, é aí que se percebe o lugar mais amplo e
positivo do Legislativo no sistema político. O Congresso Nacional cumpriu várias
vezes esse papel, como na Constituinte, na pandemia, na aprovação de reformas
constitucionais difíceis e em processos de fiscalização do governo que foram
além do palanque eleitoral, buscando aperfeiçoar as instituições e as práticas
políticas.
Nos últimos anos, o chamado presidencialismo
de coalizão, marcado por um compromisso governativo entre Executivo e
Legislativo, com maior sucesso nos governos FHC e Lula I e II, perdeu força
para um modelo mais centrífugo. Desde a crise no primeiro governo Dilma,
passando pela fragilidade política da gestão Temer e pela recusa da articulação
com os congressistas durante os dois primeiros anos da presidência Bolsonaro, o
Congresso Nacional foi adquirindo mais poderes. Em especial, no campo da
legislação sobre medidas provisórias, vetos presidenciais e, com enorme
destaque, no emendamento do Orçamento federal. Soma-se a isso o enorme
crescimento dos fundos partidário e eleitoral, fortalecendo as cúpulas
partidárias frente aos seus integrantes e, sobretudo, em relação às propostas
de repartição do poder feitas pelo Executivo.
Congressistas e partidos, em resumo, ganharam
grande autonomia em relação ao governo de plantão. Isso não é de todo ruim,
pois evita também cooptações ao estilo do Mensalão. Entretanto, juntamente com
a maior independência não veio uma visão mais ampla de país para as legendas
partidárias e nem um espírito público mais apurado para cada congressista.
No caso dos partidos, além da estéril
polarização que tem predominado na luta política, eles pouco têm atuado para
apresentar uma agenda mais ampla de reformas. O núcleo de líderes mais
importante vem do Centrão e suas ações recentes estão mais próximas do
populismo ou da defesa de lobbies poderosos. O exemplo da derrubada dos vetos
presidenciais na legislação do setor elétrico é paradigmático dessa
irresponsabilidade com a sociedade. Segundo cálculos da Associação dos Grandes
Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace), a
legislação aprovada ao fim e ao cabo pelo Congresso Nacional vai custar R$ 197
bilhões nas contas de luz até 2050. Quem vai pagar essa fatura?
O truísmo de que não há almoço grátis não foi
compreendido por grande parte das lideranças atuais do Congresso Nacional.
Quando recentemente o presidente da Câmara Federal, Hugo Motta, disse que era
preciso fazer um ajuste fiscal profundo no país, muitos ficaram bem
impressionados. Ele foi aplaudido ao criticar, corretamente, a nova legislação
do IOF. Porém, passados alguns dias, constatou-se que tudo aquilo era tão
sólido quanto o sopro do vento: os principais líderes partidários avisaram-no
de que não há chances de aprovar grandes mudanças na dinâmica orçamentária.
Aliás, já demonstraram isso no final do ano passado, quando rejeitaram várias
medidas propostas pelo Ministério da Fazenda para garantir, minimamente, o
arcabouço fiscal.
As mudanças recentes favorecem, ainda, os
parlamentares individualmente. As emendas representam hoje cerca de R$ 50
bilhões do Orçamento da União, um valor sem paralelo em outras democracias
ocidentais em relação ao montante previsto para investimentos. Além disso, uma
parte desses recursos tem pouquíssimo controle público, dando uma liberdade
enorme para determinar para onde vai o dinheiro e de que modo. Com isso, os
congressistas obtiveram maior autonomia frente ao Executivo federal e ganharam
muito poder junto aos prefeitos, bem como são cada vez mais procurados por
fornecedores de bens e serviços ao Poder público.
Esse último ponto se junta ao financiamento
público das campanhas: há fortes suspeitas de que há algo mais do que o fundo
eleitoral criando assimetrias na competição entre os candidatos nas eleições
brasileiras. O emendismo não é apenas uma personalização ao extremo do
Orçamento federal. Há indícios de que boa parte das emendas abre caminhos para
relações privadas privilegiadas que desequilibram o jogo democrático, seja pela
falta de transparência de como se dá a distribuição efetiva desses recursos, seja
pelos laços invisíveis de apoio político que isso gera.
O emendismo é o exemplo máximo do aumento do
poder sem a respectiva responsabilidade pública. Qualquer verdadeiro democrata
deve defender que o Congresso Nacional precisa ter grande influência na
definição dos destinos nacionais. Dada sua força representativa e por ser um
lugar privilegiado para o debate pluralista, o Legislativo tem de imprimir suas
digitais nas políticas públicas, sendo corresponsável por elas. No seu formato
desmedido atual, as emendas são o inverso disso: os congressistas têm muito dinheiro
para distribuir às suas bases locais, e essa enorme quantia de verbas não os
torna mais responsáveis pelos acertos e erros do Estado brasileiro.
A irresponsabilidade tem seu grau máximo no
enorme crescimento do corporativismo congressual. Desde Eduardo Cunha, os
comandantes de ambas as Casas, especialmente da Câmara Federal, tornaram-se
presidentes do sindicato dos congressistas. A criação de mais vagas para
deputados federais, rejeitada por 76% da população, segundo o Datafolha,
demonstra como o acréscimo do poder está afastando o Congresso Nacional da
opinião pública. Não por acaso, mesmo distribuindo uma quantidade recorde de
dinheiro diretamente ao povo, o Legislativo não aumenta sua popularidade.
Diante desse reforçado poder do Congresso
Nacional, vários políticos e membros da sociedade têm defendido a adoção de uma
espécie de semipresidencialismo. O problema que isso geraria, no atual contexto
político, um aumento da força institucional do Legislativo sem lhe dar
responsabilidade. Se a responsabilização política fica obscura, a democracia se
enfraquece. O novo golpismo, que reside hoje em gente que participa do processo
eleitoral, agradeceria e jogaria ainda mais contra o “sistema”. Esperar que o STF
mais uma vez segure essa barra é institucionalizar outro desequilíbrio no
presidencialismo de coalizão dos dias de hoje.
Os líderes da redemocratização, especialmente
Ulysses Guimarães, lutaram para que o Congresso Nacional fosse mais forte para
mudar o destino do Brasil, por meio do debate público na ágora congressual.
Infelizmente, o Legislativo hoje está se fortalecendo com poucos benefícios
para o futuro do país. É necessário, e possível, alterar esse rumo
urgentemente, acoplando responsabilidade a quem ganhou tanto poder.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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