sexta-feira, 20 de junho de 2025

Congresso com poder e pouco responsável - Fernando Luiz Abrucio*

Valor Econômico

No seu formato desmedido atual, as emendas deixam os congressistas com muito dinheiro para distribuir às suas bases locais sem ficarem mais responsáveis pelos acertos e erros do Estado

A democracia brasileira tem como uma das suas principais qualidades a divisão de Poderes, que evita a concentração de poder em uma pessoa ou instituição. Isso é garantido pelo controle mútuo entre Executivo, Legislativo e Judiciário, algo que ocorre, em certa medida, também entre os entes federativos. Bolsonaro não foi adiante em seu projeto de golpe do Estado, em parte, porque houve freios institucionais. Mas o caráter consociativo do presidencialismo brasileiro acentuou recentemente um efeito colateral: o Congresso Nacional se fortaleceu sem que aumentasse a responsabilidade por suas decisões.

É sempre importante louvar a independência do Congresso Nacional num país marcado por regimes autoritários. A ditadura militar fechou algumas vezes o Legislativo e cassou seus membros que não aceitavam se submeter a governantes autocráticos. A redemocratização mudou esse cenário trágico, produzindo uma Constituição que fortaleceu as funções congressuais no processo decisório e no controle do presidente da República.

Reduzir o papel congressual a carimbador do Executivo não é um bom caminho para a democracia brasileira. Vários grupos de eleitores podem ser representados no Legislativo. Ainda bem que a direita, o centro e a esquerda podem ter lugar no debate legislativo, contanto que sigam os parâmetros democráticos. O Congresso Nacional, ademais, é uma Casa que pode receber diversas parcelas da sociedade brasileira para discutirem o futuro do país. No momento, está sendo debatido o Plano Nacional de Educação (PNE), que criará metas para os próximos dez anos a um dos temas mais importantes do Brasil. Imagine se tal questão não tivesse um Legislativo aberto ao confronto de ideias e à construção de compromissos entre os opostos. Com certeza, as decisões seriam piores e menos representativas.

No entanto, junto com o poder devem vir as responsabilidades. No sistema presidencial, embora os Poderes sejam divididos, todos são partícipes, para o bem e para o mal, da definição das políticas públicas e corresponsáveis por elas. Óbvio que quem está no governo pode ser mais cobrado, mas o novo poder congressual gerou uma enorme capacidade de contrabalançar as propostas do Executivo, para além da divisão entre situação e oposição. Em outras palavras, os eleitores esperam não só que os deputados e senadores os representem, mas que eles sejam capazes de encontrar soluções para o Brasil, pensando no interesse público.

A passagem da representação do eleitoral particular de um parlamentar, ou mesmo de um partido, para o interesse público não é um trajeto simples em nenhuma democracia do mundo. Em momentos em que abraça uma grande causa social, nas situações de enfrentamento corajoso a um governante que procura exorbitar seu poder, ou quando é capaz de fazer mudanças profundas e que desagradam a grupos, é aí que se percebe o lugar mais amplo e positivo do Legislativo no sistema político. O Congresso Nacional cumpriu várias vezes esse papel, como na Constituinte, na pandemia, na aprovação de reformas constitucionais difíceis e em processos de fiscalização do governo que foram além do palanque eleitoral, buscando aperfeiçoar as instituições e as práticas políticas.

Nos últimos anos, o chamado presidencialismo de coalizão, marcado por um compromisso governativo entre Executivo e Legislativo, com maior sucesso nos governos FHC e Lula I e II, perdeu força para um modelo mais centrífugo. Desde a crise no primeiro governo Dilma, passando pela fragilidade política da gestão Temer e pela recusa da articulação com os congressistas durante os dois primeiros anos da presidência Bolsonaro, o Congresso Nacional foi adquirindo mais poderes. Em especial, no campo da legislação sobre medidas provisórias, vetos presidenciais e, com enorme destaque, no emendamento do Orçamento federal. Soma-se a isso o enorme crescimento dos fundos partidário e eleitoral, fortalecendo as cúpulas partidárias frente aos seus integrantes e, sobretudo, em relação às propostas de repartição do poder feitas pelo Executivo.

Congressistas e partidos, em resumo, ganharam grande autonomia em relação ao governo de plantão. Isso não é de todo ruim, pois evita também cooptações ao estilo do Mensalão. Entretanto, juntamente com a maior independência não veio uma visão mais ampla de país para as legendas partidárias e nem um espírito público mais apurado para cada congressista.

No caso dos partidos, além da estéril polarização que tem predominado na luta política, eles pouco têm atuado para apresentar uma agenda mais ampla de reformas. O núcleo de líderes mais importante vem do Centrão e suas ações recentes estão mais próximas do populismo ou da defesa de lobbies poderosos. O exemplo da derrubada dos vetos presidenciais na legislação do setor elétrico é paradigmático dessa irresponsabilidade com a sociedade. Segundo cálculos da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace), a legislação aprovada ao fim e ao cabo pelo Congresso Nacional vai custar R$ 197 bilhões nas contas de luz até 2050. Quem vai pagar essa fatura?

O truísmo de que não há almoço grátis não foi compreendido por grande parte das lideranças atuais do Congresso Nacional. Quando recentemente o presidente da Câmara Federal, Hugo Motta, disse que era preciso fazer um ajuste fiscal profundo no país, muitos ficaram bem impressionados. Ele foi aplaudido ao criticar, corretamente, a nova legislação do IOF. Porém, passados alguns dias, constatou-se que tudo aquilo era tão sólido quanto o sopro do vento: os principais líderes partidários avisaram-no de que não há chances de aprovar grandes mudanças na dinâmica orçamentária. Aliás, já demonstraram isso no final do ano passado, quando rejeitaram várias medidas propostas pelo Ministério da Fazenda para garantir, minimamente, o arcabouço fiscal.

As mudanças recentes favorecem, ainda, os parlamentares individualmente. As emendas representam hoje cerca de R$ 50 bilhões do Orçamento da União, um valor sem paralelo em outras democracias ocidentais em relação ao montante previsto para investimentos. Além disso, uma parte desses recursos tem pouquíssimo controle público, dando uma liberdade enorme para determinar para onde vai o dinheiro e de que modo. Com isso, os congressistas obtiveram maior autonomia frente ao Executivo federal e ganharam muito poder junto aos prefeitos, bem como são cada vez mais procurados por fornecedores de bens e serviços ao Poder público.

Esse último ponto se junta ao financiamento público das campanhas: há fortes suspeitas de que há algo mais do que o fundo eleitoral criando assimetrias na competição entre os candidatos nas eleições brasileiras. O emendismo não é apenas uma personalização ao extremo do Orçamento federal. Há indícios de que boa parte das emendas abre caminhos para relações privadas privilegiadas que desequilibram o jogo democrático, seja pela falta de transparência de como se dá a distribuição efetiva desses recursos, seja pelos laços invisíveis de apoio político que isso gera.

O emendismo é o exemplo máximo do aumento do poder sem a respectiva responsabilidade pública. Qualquer verdadeiro democrata deve defender que o Congresso Nacional precisa ter grande influência na definição dos destinos nacionais. Dada sua força representativa e por ser um lugar privilegiado para o debate pluralista, o Legislativo tem de imprimir suas digitais nas políticas públicas, sendo corresponsável por elas. No seu formato desmedido atual, as emendas são o inverso disso: os congressistas têm muito dinheiro para distribuir às suas bases locais, e essa enorme quantia de verbas não os torna mais responsáveis pelos acertos e erros do Estado brasileiro.

A irresponsabilidade tem seu grau máximo no enorme crescimento do corporativismo congressual. Desde Eduardo Cunha, os comandantes de ambas as Casas, especialmente da Câmara Federal, tornaram-se presidentes do sindicato dos congressistas. A criação de mais vagas para deputados federais, rejeitada por 76% da população, segundo o Datafolha, demonstra como o acréscimo do poder está afastando o Congresso Nacional da opinião pública. Não por acaso, mesmo distribuindo uma quantidade recorde de dinheiro diretamente ao povo, o Legislativo não aumenta sua popularidade.

Diante desse reforçado poder do Congresso Nacional, vários políticos e membros da sociedade têm defendido a adoção de uma espécie de semipresidencialismo. O problema que isso geraria, no atual contexto político, um aumento da força institucional do Legislativo sem lhe dar responsabilidade. Se a responsabilização política fica obscura, a democracia se enfraquece. O novo golpismo, que reside hoje em gente que participa do processo eleitoral, agradeceria e jogaria ainda mais contra o “sistema”. Esperar que o STF mais uma vez segure essa barra é institucionalizar outro desequilíbrio no presidencialismo de coalizão dos dias de hoje.

Os líderes da redemocratização, especialmente Ulysses Guimarães, lutaram para que o Congresso Nacional fosse mais forte para mudar o destino do Brasil, por meio do debate público na ágora congressual. Infelizmente, o Legislativo hoje está se fortalecendo com poucos benefícios para o futuro do país. É necessário, e possível, alterar esse rumo urgentemente, acoplando responsabilidade a quem ganhou tanto poder.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

 

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