sexta-feira, 20 de junho de 2025

A República de 1889 no banco dos réus - José de Souza Martins

Valor Econômico

Os opostos estão amarrados um ao outro. Chegarão às eleições de 2026 com uma só e mesma corda no pescoço. Não foram ressocializados para a democracia

Mais do que definir quem esteve no banco dos réus na semana passada no STF, importa identificar e decifrar o que é que nele esteve e ainda está. Obviamente, não foi aquele um ato de acerto de contas entre o ministro Alexandre de Moraes e Bolsonaro e os bolsonaristas. Ou uma vitória da esquerda sobre a direita. Do mesmo modo que a vitória de Bolsonaro sobre as esquerdas em 2018 não foi propriamente uma vitória.

Bolsonaro caiu na armadilha do binarismo e da polarização na qual caíra também o “pensador” do grupo, Olavo de Carvalho”, crítico autoritário de autores que não leu. Foram apanhados em cheio no meio do movimento pendular da política antirrepublicana inaugurada pelo golpe de 1889. Tornaram-se instrumentos alienados do pendularismo. Não estão sozinhos nele.

Também o PT foi vítima equivocada do movimento pendular por ele assumido no afã de propor-se contra Fernando Henrique Cardoso e o PSDB. Em nome do pressuposto falso de que o PT é um partido de esquerda no confronto com a social-democracia, o PSDB e FHC, que seriam a direita. Nunca o foram. A transformação do nosso sistema político precário num sistema repetitivo de retorno ao mesmo e à mesmice engendrou um vazio político intersticial à espera do aventureiro que o ocupasse.

O vazio tinha um nome, Bolsonaro, que era e é meramente negação da política e dos políticos. Ele atraiu para si os seus iguais, os desprovidos de referências doutrinárias relativas à política e à democracia. Atraiu para si os que professavam sentimentos antipolíticos traduzidos em ódio contra a política, as instituições, os políticos de convicções propriamente democráticas. Atraiu o que havia de pior na política brasileira.

Todas as mistificações da crônica ignorância nacional encontraram nele o representante ideal. Nem Deus escapou no que se tornou a usurpação pentecostal da religiosidade do povo. O Estado brasileiro se tornou um Estado inconstitucional porque confessional, de religiões e seitas que colocaram o gazofilácio no lugar do púlpito e a crendice no lugar da fé.

O antitudo foi se infiltrando a partir de um perfil negativo, atraindo num crescente geométrico um número imenso de pessoas de senso comum pobre, ideologicamente confusas e autoritárias, fascistas, afogadas na concepção de que política é um modo de odiar e eliminar o discordante, o diferente, o democrata por meio de mentiras propositais, de linchamento moral do outro.

Bolsonaro e o bolsonarismo chegaram ao poder, também, como reagrupamento dos resíduos e detritos da ditadura militar de 1964 porque os que tinham o dever de serem lúcidos no serviço da pátria esqueceram de puxar a descarga do autoritarismo logo que a possibilidade da democracia retornou ao poder.

Nem mesmo notaram a bomba de efeito retardado do Artigo 142 instalado na própria Constituição de 1988 como recado pseudojurídico e anticonstitucional aos vindouros para que soubessem quem é que neles continuaria mandando.

Os militares inconformados com a perda do poder e de seus privilégios, por meio desse artigo, estavam de tocaia para retomar o que julgam seu. Obra de continuadores do golpe de 1889, que implantou no Brasil um regime de usurpação e mistificação.

Com a cumplicidade dos filhos do oligarquismo, os militares despojaram a sociedade civil da condição de protagonista da ordem democrática e a colocaram sob sua tutela aberta ou oculta.

Em 2019, os despistados dessa cultura antipolítica de enquadramento do cidadão e da cidadania retornaram ao poder. Essa gente é a que está sentada no banco dos réus pela tentativa de golpe.

Nem por isso as ameaças ao Brasil cessaram. De vários modos, o extenso desmonte dos fundamentos da democracia no Executivo e no Legislativo está consumado com a durabilidade dos mandatos de agentes do autoritarismo infiltrados nos vários níveis do poder. O país tem que recomeçar sua história.

O dualismo bolsonarizado e polarizado também sentou no banco dos réus. Nele, os opostos estão amarrados um ao outro. Chegarão às eleições de 2026 com uma só e mesma corda no pescoço e ao cadafalso do voto. Não foram ressocializados para a democracia.

É evidente, no provável resultado do julgamento, que Bolsonaro e seus malucos, como ele os definiu, vão ser jogados na lata de lixo da história pelos próprios bolsonaristas, os que foram por eles usados em nome de um projeto pessoal de poder e de dominação.

Se o país, nos próximos meses, não se revelar capaz de uma grande e sólida coalizão democrática, com um projeto de nação, contra a concepção carneiril de poder, em que as eleições elegem representantes de um rebanho, entraremos de joelhos numa nova era de alienação e ignorância.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).


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