O Globo
Caso da Abin paralela mostra como capitão
entendia Presidência como algo personalíssimo, em que instituiições são postas
a serviço do ocupante do cargo
A Abin paralela, um arremedo de SNI imaginado
e colocado em prática por Jair Bolsonaro, foi um dos primeiros sinais de como o
capitão entendia a Presidência da República: algo personalíssimo, em que
instituições estão a serviço do ocupante do cargo e “inimigos”, em sua maioria
imaginários, devem ser perseguidos e tirados do caminho. Tudo menos uma visão
democrática do exercício do poder.
Era 2 de março de 2020, ainda antes da decretação da pandemia de Covid-19, quando o ex-coordenador da campanha de Bolsonaro e já então seu ex-ministro Gustavo Bebianno chamou, no programa “Roda viva”, a estrutura que era montada por Carlos Bolsonaro pelo nome depois consignado no inquérito da Polícia Federal.
Já se sabia da existência de um gabinete do
ódio instalado na Secretaria de Comunicação da Presidência, também sob as
ordens de Carlos, mas foi o ex-homem forte de Bolsonaro quem primeiro revelou a
montagem de um esquema ilegal de arapongagem de adversários — e, viu-se depois,
também de aliados, como é típico das ditaduras, acabadas ou em formação.
A extensão dos pedidos de monitoramento —
tanto físico quanto de movimentações financeiras e de outra natureza dos alvos,
que iam de jornalistas a pastores, passando por servidores públicos e políticos
— mostra que não havia nada de trivial na movimentação da Abin no governo de
alguém para quem o modelo a seguir sempre foi a ditadura militar.
Vale lembrar que a Abin foi criada justamente
para ser uma estrutura de inteligência democrática, no lugar do nefando SNI da
ditadura, mas que, vez por outra, já havia apresentado recaídas de arapongagem
clandestina, como quando foi flagrada na época da privatização da telefonia no
governo Fernando Henrique. Mas nunca se viu algo como o que está descrito nas
mais de mil páginas reunidas pela PF sobre o esquema da Abin paralela da
família Bolsonaro.
A mesma máquina que espionava alvos
escolhidos a dedo pelo presidente e seus aliados era a acionada para deflagrar
campanhas de destruição de reputações contra essas pessoas. É preciso ainda que
a PF e o Ministério Público esclareçam em que grau outros órgãos, como Coaf e
Receita Federal, foram usados no esquema de arapongagem ilegal para obter
informações sobre movimentações financeiras dos apontados como incômodos pelo
capitão.
O que impediu que o golpe bolsonarista — já
desenhado desde a chegada ao Planalto, com estruturas como gabinete do ódio e
Abin paralela, depois levado adiante com os ataques às urnas eletrônicas e ao
Judiciário, a sabotagem à ciência e às políticas públicas na pandemia e as
explícitas tentativas de subverter o resultado das urnas e não transmitir o
poder depois da derrota — foram a atuação firme do Judiciário quando outras
instituições se omitiram e, também, o extremo amadorismo de Bolsonaro e dos
seus.
Em todas as etapas de seu golpismo tosco, o
presidente fez questão de deixar mais rastros do que as migalhas que espalhava
displicentemente na mesa de café da manhã dos tempos dos vídeos de campanha,
metáfora acabada do que viria a ser seu governo caótico. Basta lembrar a
horripilante reunião ministerial de 22 de abril de 2020, quando, em plena crise
com seu então ministro da Justiça, Sergio Moro, um Bolsonaro colérico reclamava
de não poder controlar a Polícia Federal e se queixava da inoperância da inteligência,
para dizer que a sua, particular, funcionava. Uma confissão da existência da
Abin paralela.
Os dois inquéritos, esse e o da trama
golpista, integram um só conjunto de provas de quão perto o Brasil esteve de
perder uma democracia que levou mais de duas décadas para recuperar. E de como
propostas como indulto ou anistia são um ultraje à sociedade de um país que já
empurrou por vezes demais suas mazelas para debaixo do tapete.
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