sexta-feira, 20 de junho de 2025

Barbaridade em forma de lei - Flávia Oliveira

O Globo

Medida ataca essencialmente meninas e mulheres que recorrem ao aborto legal, autorizado no Brasil há mais de oito décadas

O prefeito Eduardo Paes sancionou lei que obriga unidades de saúde do Rio de Janeiro a exibir placas antiaborto. Não foi o primeiro, mas — até aqui — o mais abominável dos seguidos acenos do mandatário da capital aos ultraconservadores para viabilizar a candidatura ao governo do estado, em 2026. Em ofício ao presidente da Câmara Municipal, Carlo Caiado (PSD), Paes reportou o aval à Lei 8.936/2025, de autoria dos vereadores Rogério Amorim (PL), Rosa Fernandes (PSD) e Marcio Santos (PV). Desde quinta-feira da semana passada, hospitais, clínicas, estabelecimentos de saúde e planejamento familiar do Rio estão obrigados a afixar peças visíveis, em tamanho que facilite a leitura, com as seguintes frases:

1) Aborto pode acarretar consequências como infertilidade, problemas psicológicos, infecções e até óbito;

2) Você sabia que o nascituro é descartado como lixo hospitalar?;

3) Você tem direito a doar o bebê de forma sigilosa. Há apoio e solidariedade disponíveis para você. Dê uma chance à vida.

Em caso de descumprimento, instituição e gestor serão, primeiramente, advertidos. A reincidência implica multa de R$ 1 mil. O Ministério Público do Rio ajuizou ação civil pública pela inconstitucionalidade da lei. Para começar, o município não tem autoridade para legislar sobre matéria de competência da União. Juristas, entidades da área de saúde, organizações feministas apontam constrangimento, prática discriminatória, cerceamento do direito à saúde. São esforços bem-vindos, urgentes, mas 100% desnecessários, houvesse o mínimo de discernimento, empatia ou bondade em quem propôs, aprovou e sancionou a barbaridade.

A nova lei ataca essencialmente meninas e mulheres que recorrem ao aborto legal, autorizado no Brasil há mais de oito décadas. Na origem, a interrupção da gestação era permitida em situações de estupro ou risco de vida à gestante. Em 2012, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela descriminalização também em caso de fetos com anencefalia, pela falta de condições de sobrevida fora do útero.

Por óbvio, cartazes e placas de alerta previstos na lei carioca não serão exibidos em clínicas e consultórios clandestinos, onde mulheres põem em risco o corpo e a vida por não terem no Brasil o direito recém-assegurado pelo Parlamento no Reino Unido, gravado na Constituição da França desde o ano passado, autorizado por lei na Argentina em 2020. No Rio, a mensagem tem endereço certo: o sistema público de saúde. É lá que vigorarão as determinações elaboradas por três vereadores, aprovadas por 29 e sancionadas por Eduardo Paes. O texto foi forjado para atacar, com intimidação e desinformação, o direito ao aborto legal.

Na semana passada, o Ministério da Justiça escancarou no Mapa da Violência 2025 o ambiente hostil imposto a mulheres no Brasil. Em um ano, 71.834 registros de estupro, média de 196 por dia. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública contabilizou um crime sexual a cada seis minutos no país, em 2024; seis em cada dez vítimas tinham até 13 anos de idade; dois terços dos agressores eram da família. Pela lei carioca, meninas e mulheres que engravidem de um estupro e busquem o serviço de saúde serão obrigadas a ler sobre morte, infertilidade, infecções e transtornos psicológicos. Como se a violência sexual que sofreram fosse o mal menor.

As que, porventura, busquem o aborto legal por risco à própria vida serão confrontadas com a frase sobre feto virar lixo hospitalar. Uma lei municipal orientada a emparedar uma mulher na fronteira da morte. E a que gesta um bebê anencéfalo — portanto, sem chance de vida extrauterina — será apresentada a uma inexequível perspectiva de adoção. A frase final da recomendação proposta por três vereadores, aprovada por 29, sancionada por Eduardo Paes, soa como agressão adicional:

— Dê uma chance à vida.

De quem?

Não surpreende que políticos reacionários eleitos para o Legislativo proponham aberrações disfarçadas de lei, avancem sobre direitos civis de mulheres, negros, minorias, enquanto se esgoelam em favor de liberdades personalíssimas. Espantoso é que um prefeito com estampa de modernidade, marido e pai, avalize um texto tão ilegal quanto imoral, em nome de um projeto político. Com apoio de uma base aliada pretensamente progressista, Paes tem enfileirado decisões que expõem até onde está disposto a ir pelo Palácio Guanabara. Aprovou grupamento municipal armado com quadros temporários; atacou restrições do Supremo Tribunal Federal na ADPF das Favelas; mandou retirar (depois recuou) da Lagoa cartazes de crianças assassinadas; revogou resolução que reconhece práticas religiosas de matriz africana como complementares aos tratamentos no SUS. Por compaixão ou parecer jurídico, poderia ter vetado o projeto de lei antiaborto. O veto seria derrubado, mas a reputação ficaria intacta com porção relevante do eleitorado. Escolheu o adesismo que envergonha, a submissão que apequena.

 

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