Na manhã da quarta-feira, quando uma greve no metrô levou São Paulo a congestionamento recorde, um senhor de terno e gravata encostou seu 4x4 no canteiro central da Av. Pedroso de Moraes, em Alto de Pinheiros, zona oeste da cidade.
Desceu do carro e demorou-se lendo os avisos plastificados que estavam afixados num tronco de árvore. Davam conta da remoção de Raimundo Arruda Sobrinho, que morava naquele local havia 18 anos, para um centro de assistência social da prefeitura onde poderia receber visitas. O informe trazia a página do facebook onde havia mais informações sobre Raimundo.
O executivo terminou a leitura e entrou no carro para cavar de volta seu lugar no trânsito ainda parado.
A cena repete-se diariamente. Moram nas imediações o escritor amazonense Milton Hatoum e o candidato do PSDB à prefeitura, José Serra. Foi naquela vizinhança que instalaram-se o comitê de campanha ao governo do Estado do ministro da Educação, Aloizio Mercadante, a Siemens e um flat onde executivos com negócios na região se hospedam. Nos abrigos de ônibus do entorno veem-se panfletos com a foto de Vladimir Herzog, jornalista morto pela ditadura cujo laudo oficial atestava suícidio. Enquanto morou por ali, Raimundo também foi vizinho de Harry Shibata, médico que assinou o laudo e cuja casa foi, recentemente, alvo de um protesto.
Ao longo das quase duas décadas em que morou ali, Raimundo dormia ao relento e acordava para escrever. Fez amigos entre os moradores da região que, a despeito dos montes de lixo que acumulava ao seu redor, e dos sacos com que se vestia e sobre os quais dormia, o visitavam para conhecer seus poemas ("O sol, a chuva, o frio são transitórios/ O café esfria progressivamente/ A gente não armazena nada"). Alunos de escolas privadas da vizinhança que entrevistavam Raimundo, voltavam depois para visitá-lo, muitos deles a caminho da ciclofaixa que se inicia a poucos quarteirões dali.
Recusava dinheiro e repartia comida e roupas que recebia com outros moradores de ruas e vigias da região. Goiano, como Carlos Cachoeira, e migrante em São Paulo desde os anos 1970, Raimundo foi vendedor de livros antes de ir parar na rua. Inspirou reportagens e documentários. Um artista, revoltado com o patrocínio estatal ao blog de poesia de uma cantora da MPB, dedicou uma escultura ao poeta que escrevia de graça.
Não se colhe regozijo público pela remoção da miséria ambulante daquele enclave de riqueza. No facebook mantido em seu nome quase 800 pessoas acompanham as notícias de sua vida no abrigo municipal.
As demonstrações de solidariedade recebidas por Raimundo mostram que não só de higienismo vive a banda mais aquinhoada de São Paulo.
Duas semanas depois de Raimundo ter sido recolhido ao abrigo municipal, a estudante de Direito Mayara Petruso foi condenada pela justiça paulista por preconceito.
Mayara frequentava o parque vizinho a Raimundo e, ao tomar conhecimento da vantagem da candidatura petista junto ao eleitorado nordestino na disputa de 2010, postou no Twitter a mensagem "Nordestino não é gente, faça um favor a São Paulo: mate um nordestino afogado".
Ao receber o título de cidadão paulistano, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva reciclou aquele momento da campanha que embalou Mayara. Bateu na tecla de que o PT é vítima primeira do higienismo porque governa para os mais pobres e citou nominalmente a administração Marta Suplicy - "maior vítima do preconceito da elite de São Paulo".
Lula deixou o governo como o presidente mais consagrado da história do país; sua sucessora faz um governo que surpreende muitos dos que nela não votaram; seu partido tem chances de desbancar o PMDB como a principal força municipal do país; Mayara foi condenada; e um morador de rua sujo e maltrapilho recebe demonstrações de solidariedade num enclave rico de São Paulo.
É preciso se acrescentar a proximidade do julgamento do mensalão a esta sequência de fatos para se compreender por que Lula tenta ressuscitar o discurso de que não fosse o apoio das ruas teria sido vítima do golpe das elites.
O discurso parece deslocado da sociedade que emergiu da era lulista. Durante seu governo poucos além dos "cansados" saíam às ruas espontaneamente. Sem a tutela de um presidente que monopolizava o altruísmo, hoje protesta-se pelos vetos ao Código Florestal, por um transporte público de qualidade e pelo julgamento dos torturadores da ditadura.
A quebra do monopólio do altruísmo colheu uma vitória importante esta semana com a aprovação da PEC do Trabalho Escravo na Câmara. A mesma bancada que votou pelo Código Florestal recuou na PEC por temer as urnas.
Na homenagem que recebeu na Câmara Municipal, Lula disse que a elite da cidade o culpava pelo trânsito porque pobre agora compra carro.
É uma maneira de olhar pra frente com retrovisor. De fato, se o desemprego não estivesse no seu patamar mais baixo dos últimos dez anos, o baixo investimento em transporte público não redundaria nesse caos permanente em que vivem as grandes cidades. Se é culpa de Lula, viva Lula. Mas não é mais disso que se trata.
Porque ganham mais e comem melhor é que os brasileiros podem fazer reivindicações e ter aspirações para além da subsistência. Talvez a defesa dos arrolados pelo Supremo no processo do mensalão não esteja entre elas.
É um momento que parece rimar mais com a demanda por transparência. Se os ministros do Supremo correrem para cumprir as determinações da Lei de Acesso à Informação e abrirem os contracheques, a exemplo do que fez a ministra Carmen Lúcia, reforçam sua legitimidade no julgamento.
Ao bancar a mudança no reajuste da poupança, a presidente Dilma Rousseff parece ter captado melhor esse momento em que as mistificações custam mais a granjear corações e mentes.
Se a medida é necessária para os juros continuarem a cair e a economia voltar a crescer, que seja. O problema é se, descombinado de russos e gregos, o crescimento não vier. Porque é quando a riqueza se expande e se espalha, ainda que timidamente, que fica mais fácil olhar para o lado e buscar notícias do Raimundo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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