A macroeconomia "aberta" da tia Joaquina ensina que os déficits em
conta corrente do balanço de pagamentos são financiados por "poupança
externa", ou seja, o "excesso" de absorção doméstica tem como contrapartida
a aquisição de títulos de dívida ou de direitos de propriedade pelos
estrangeiros. Na contabilidade da titia, os déficits suscitam alterações
patrimoniais entre residentes e não residentes.
Diria Roberto Campos: assim como o biquíni, as identidades contábeis mostram
o acessório e escondem o essencial.
Vou tomar os ciclos de expansão dos últimos 30 anos nos Estados Unidos para
sugerir que a macroeconomia da Tia Joaquina inverte as relações de
determinação. Na origem e desenvolvimento das bolhas dos anos 80, 90, e 2000
estão as peripécias da finança capitalista contemporânea. A desregulamentação e
a abertura das contas de capital instigaram o continuado rearranjo nos estoques
de riqueza mobiliária. Escoradas na elástica criação de liquidez pelo sistema
de crédito globalizado, as transformações financeiras dos últimos 30 anos
abriram espaço nos portfólios para a diversificação dos ativos denominados em
moedas distintas. A "internacionalização" das carteiras dos
administradores da riqueza, o crescimento dos grandes investidores
institucionais e os mercados de derivativos ampliaram o espaço da alavancagem,
da arbitragem e da especulação.
Os americanos não se endividaram porque gastaram demais, mas sim gastaram
demais porque se endividaram
Beneficiados pela emissão da moeda-reserva e, portanto, favorecidos pela
capacidade de atração de seu mercado financeiro líquido e profundo, os Estados
Unidos ganharam preeminência no processo de globalização. Cito Claudio Borio,
economista do Banco para Compensações Internacionais (BIS): "É a
acumulação líquida de direitos por não residentes que reflete o déficit em
conta corrente dos Estados Unidos. Nos anos 90 e 2000, a acumulação líquida foi
três vezes menor do que a variação nos fluxos brutos. Isso revela um movimento
substancial de entrada e saída de capitais financeiros. Ainda que os Estados
Unidos não apresentassem déficits externos ao longo dos anos 1990 (e da
primeira década do século XXI), o ingresso de capitais teria sido
robusto."
Os dados do BIS mostram que a aquisição de "securities" privadas
por não residentes liderou o influxo de recursos na economia americana. Depois
de 2002 cresceram substancialmente os compromissos dos bancos americanos com
investidores estrangeiros. O movimento vai do ingresso de capitais para a
expansão do crédito aos consumidores americanos e daí para o déficit em conta
corrente. Os consumidores americanos não se endividaram porque gastaram demais,
senão gastaram demais porque se endividaram.
No Tratado da Moeda, Keynes cuida das relações entre circulação industrial e
circulação financeira. Ele diz o óbvio: o volume de transações com instrumentos
financeiros não só é altamente volátil como não tem conexão próxima com a
produção corrente de bens de capital ou de bens de consumo. As decisões de
produção geram os fluxos de renda, lucros e poupanças das famílias e empresas.
São modestos se comparados ao estoque de riqueza real e mobiliária já acumulada
ao longo dos ciclos de produção de valor. Esse estoque é formado por títulos de
dívida e de direitos de propriedade (ações) negociados e avaliados diariamente
nos mercados financeiros.
A economia capitalista desenvolvida é dotada de um aparato
monetário-financeiro incumbido de adiantar dinheiro para a criação de riqueza nova,
bem como fazer circular os representantes da riqueza já acumulada. Os bancos
(aí incluído o Banco Central e os demais intermediários financeiros não
bancários que abastecem seus passivos nos money markets funds) estão incumbidos
de transmitir aos possuidores de riqueza as condições de acesso à liquidez e ao
crédito tomando em conta os "humores do mercado".
Os bancos cuidam de administrar o estado da liquidez e do crédito de acordo
com as expectativas a respeito da evolução dos balanços das empresas, famílias,
governos e países, ou seja, das mudanças nas relações entre os preços de dois
estoques: a valorização esperada dos ativos e as avaliações sobre a
"qualidade" das dívidas que financiam sua posse.
A elasticidade natural do sistema financeiro americano foi exacerbada pelo
comportamento "altista" dos bancos no manejo da oferta de crédito.
Keynes diria que os mercados de riqueza ingressaram numa "polarização
altista" ("bull market"). Para ele, em tais circunstâncias, a exacerbação
de expectativas torna inconveniente a política monetária assentada na
administração da taxa de juro de curto prazo. Inconveniente por seus prováveis
efeitos sobre o gasto produtivo. (Para acalmar o Touro, o Banco Central atira
os trabalhadores à sarjeta do desemprego.) Por isso, Keynes recomenda
explicitamente, em tais ocasiões, o direcionamento do crédito. ("Treatise
on Money", pag 229).
Na banda real da economia globalizada, foi na força do dólar e na
resiliência de seu mercado financeiro que a grande empresa americana sustentou
a migração de suas fábricas para regiões de menor custo relativo. As entradas
de "investimento de portfólio" financiaram a saída líquida de capital
produtivo.
Nesse jogo da grande finança com a grande empresa, conforma-se uma mancha
manufatureira que pulsa em torno da China. O modelo sino-americano garantiu
inflação baixa e taxas de juros idem: as reservas chinesas em dólares fechavam
o circuito endividamento-gasto-renda-poupança. Enquanto isso, os ganhos de
capital prospectivos aumentavam a atratividade dos novos instrumentos
financeiros. Os capitais cobiçosos corriam para a Meca do enriquecimento
ilimitado. A cada rodada de valorização de ativos ampliavam-se os
desequilíbrios potenciais nos balanços de famílias e elevava-se o déficit em
conta corrente. O que diria tia Joaquina?
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da
Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve
mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores
economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting
Economists.
Fonte: Valor Econômico
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