"Se o povo é analfabeto,
só os ignorantes estarão
em termos de o governar"
Ruy Barbosa
A essência do regime democrático reside no voto. É pelo sufrágio secreto e
direto, de igual valor para todos, que se concretiza a soberania popular,
expressão consagrada no artigo 14 da Constituição. Em situações extremas,
quando grave crise põe em xeque as instituições, fazendo-as perder
credibilidade, o direito de eleger governantes acaba sucumbindo à revolução
popular ou é abatido por golpe de Estado. No Brasil tivemos a Revolução de 30,
que desaguou na ditadura de Getúlio Vargas, e o golpe de 64, desfechado pelas
Forças Armadas.
O regime implantado em 1964 estrangulou o Estado democrático. Em janeiro de
1985, depois de 21 anos de ditadura, o candidato do governo, Paulo Maluf, foi
derrotado no Colégio Eleitoral por Tancredo Neves, do PMDB, que tinha José Sarney
como vice. Em 1990 o povo voltou às urnas e deu a vitória a Fernando Collor de
Mello. Seguiram-se na Presidência da República, pelo voto direto, Fernando
Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Para as novas
gerações, democracia é conquista recente, em processo de aprendizagem,
circunstância que faz o País pagar caro pelo noviciado.
A Constituição de 1988 restaurou as liberdades democráticas. Não nos
ensinou, porém, como exercê-las, livres da corrupção e do carreirismo. Bastam o
mensalão e o horário eleitoral para ver o estágio em que nos encontramos. Em
vez de mensagens consistentes, objetivas, que transpirem sinceridade, o que se
assiste é a uma espécie de circo mambembe, com momentos de Escolinha do
Professor Raimundo. Demagogos tentam nos convencer de que são infalíveis e
aptos a operar milagres. A exigência da ficha limpa trouxe enorme progresso.
Não bastará, entretanto, para impedir a presença de elevado número de
despreparados, iletrados e corruptos, que usam de todos os recursos para se
elegerem prefeito e vereador. É a proliferação bacteriana de tipos como Zé do
gás, Chico ambulante, Mulher Pera, Denise massagista, sargento Júlio, pastor
Tobias, dr. Aristóbulo, Helena da lotérica, Zuleica cartomante, à procura de
bom emprego e mordomias.
A responsabilidade pela mediocridade dominante cabe a poderosos dirigentes
partidários, cujo objetivo é a vitória, pouco importando o preço a pagar.
Legendas são negociadas de conformidade com a lei da oferta e da procura. O
malabarismo eleitoreiro é patético. Favores são trocados entre velhos inimigos,
como se viu quando Lula e Fernando Haddad desembarcaram no jardim da mansão de
Maluf para lhe renderem vassalagem em troca de segundos na televisão. A
fotografia estampada nos jornais me fez recordar, decepcionado, o altivo
sindicalista que lutou contra a ditadura e fez do combate à corrupção bandeira
de luta. Aliados em São Paulo e no Paraná podem ser adversários em Minas, Mato
Grosso, Pernambuco, segundo as conveniências locais. Sindicatos e igrejas não
ficaram à margem do processo, sendo explorados como currais eleitorais.
Minúsculas legendas, que agrupam meia dúzia de frustrados, insistem em
marcar presença, sem chances de eleger um só prefeito ou vereador. Servem-se do
dinheiro público para formular, pelo rádio e pela TV, soluções desvairadas,
divorciadas da frieza orçamentária. Pretendem transformar o Brasil em vasto
acampamento de servidores públicos, mantidos pelo Tesouro. Inspiram-se no
falido modelo cubano e na ditadura venezuelana, e ignoram o elevado grau de
rejeição entre o eleitorado.
O povo, tal como anotou Aristides Lobo no episódio da Proclamação da
República, assiste a tudo bestializado, atônito, surpreso. A Constituição, no
afã de ser exemplo de democracia, escancarou as portas a todos os estilos de
abusos. Além de sujeito a horário político, o brasileiro é obrigado a votar. E
à míngua de candidatos que o convençam, tenta encontrar alguém que represente
menor perigo, anula o voto, vota em branco ou vai gozar o "feriado" e
justificar a ausência.
Em São Paulo o quadro é preocupante. Na impossibilidade de formar juízo
seguro, o paulistano talvez eleja quem mais abusou da demagogia. Muitos votarão
por palpite e obrigação legal, mas sem convicção. Quanto à Câmara Municipal, o
cenário é desértico. Nada indica que tenhamos avançado no terreno da qualidade.
A carência de nomes e a multiplicação de pretendentes conhecidos pelo apelido,
sem currículo, surgidos do nada indicam que continuaremos na mesma, sem
Legislativo independente e sem o órgão cujo dever seria colaborar com o
Executivo nas boas iniciativas, mas disposto a mantê-lo sob rígida
fiscalização.
Eleições municipais são a antevéspera de 2014. É por meio delas que os
partidos procuram lançar bases locais de apoio para disputas futuras. Em troca
de favores agora recebidos, prefeitos e vereadores serão porta-vozes de
candidatos a deputado estadual e federal, senador, governador, presidente,
independentemente do mérito e de acordo com a bolsa de cada um. Aqui reside o
perigo. Foi a partir dos municípios que o PT, em poucos anos, chegou à
Presidência da República, de onde não pretende sair.
Se quisermos erradicar a corrupção e impedir a presença de tiriricas na vida
pública, devemos começar já com criterioso uso do voto. Se assim não for,
dentro de dois anos se repetirá o espetáculo circense, com resultados
previsíveis.
Vem-me à lembrança velho morador de Capivari, no interior paulista, a quem
cidadão proeminente se queixava da caótica situação política da cidade e do
País. Com a experiência acumulada em muitos anos de vida, respondeu o homem do
povo: "Não se aborreça, vai ficar pior..."
Almir Pazzianotto Pinto, advogado, foi Ministro do Trabalho, Presidente do Tribunal
Superior do Trabalho,
Fonte: O Estado de S. Paulo
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