Fora dos Estados Unidos poucos conhecem a história do político Huey Long,
que mandou na Luisiana até ser assassinado, em circunstâncias misteriosas, em
1935. Foi acusado de corrupto e saudado como reformador social. Acabo de ler
"Blood and Thunder", um romance policial cujo autor, Max Allan
Collins, jura que ele foi corrupto. Mas vasculhei a literatura a respeito - e
me chamou a atenção o quanto Long melhorou a vida de seu Estado e a dos mais
pobres. A Luisiana, quando ele assume o governo estadual, em 1928, mal tem
estradas (só 500 km com asfalto), pontes (três) e carece de alfabetizados (eram
75%, a menor taxa no país) e eleitores (1,7 milhão possíveis votantes não
conseguiam registrar-se). Em quatro anos, os números saltam. Constrói 3,5 mil
km de estradas asfaltadas e 111 pontes, alfabetiza gente e amplia o direito de
voto.
Huey Long foi odiado pela elite do Estado, que dá os heróis do romance. Mas
essa elite, à qual pertencia seu suposto assassino, não era admirável. Seus
membros se achavam honestos e talvez até o fossem no sentido de não furtar, mas
não viam problemas em oprimir os negros e em manter analfabetos os brancos
pobres. (Qualquer semelhança com nossa República Velha não é mera
coincidência). Assim, quando Long manda distribuir livros didáticos de graça,
pelo menos uma prefeitura se recusa: não queria pobres alfabetizados, isto é,
eleitores. Finalmente, a própria causa de seu assassinato tem a ver com o
preconceito de cor, porque, se Carl Weiss matou Long, foi sentindo-se ofendido
porque o ex-governador dizia que Weiss teria sangue negro.
Por que conto esta história? Porque ela faz pensar em vários conflitos
atuais, na América do Sul. Temos líderes que, como Long, melhoram as condições
de vida do povo. O fato não comporta discussão: em vários países cai a miséria.
(Pode-se discutir, sim, quais serão as causas dessas mudanças. O fenômeno é
internacional, então qual o mérito de cada governo nisso? Ou em que medida as
causas mais recentes, como as políticas de Lula, terão sido decisivas? em que
medida as mais remotas, como as de FHC? O que me parece indiscutível é que o
fenômeno ocorreu sob governos de esquerda; mas, lembram alguns, bafejados pela
conjuntura internacional). Agora, alguns desses governos foram acusados de
práticas eticamente duvidosas. No Brasil, o julgamento do mensalão põe em
cheque a conduta ética de líderes importantes do PT. Na Argentina, na
Venezuela, no Paraguai, críticas mais severas foram dirigidas aos governos.
Haverá um link entre políticas de inclusão social, levadas a cabo com êxito
por governos de esquerda, e a corrupção?
Por que se associa corrupção e esquerda?
Ou será este um "topos", um lugar-comum do discurso? A maior parte
das pessoas acredita em algo que chamamos de "realidade". Mas com
frequência a "realidade" é construída. Nós, humanos, que enxergamos
em três dimensões, com dois olhos, mal podemos imaginar como o peixe, com olhos
que não convergem, vê seu mundo. Nós, que vemos bem mas cheiramos pouco, mal
imaginamos como um cão, de olfato apuradíssimo e visão mais limitada, constrói
o mundo. Faço uma comparação. Se tivermos óculos - políticos, religiosos,
econômicos - que nos tornem mais atentos a umas características do que a
outras, destacaremos aquelas. Ora, é provável que pessoas com mais dinheiro
considerem que políticas sociais, que por vezes tiram dinheiro deles para dar
aos mais pobres, estejam próximas do furto. Um governante que me tribute muito
me fará, possivelmente, sentir assaltado; daí, a chamá-lo de ladrão vai só um
passo. A fronteira entre a realidade e o mito ou a projeção mental se dilui.
Pensem no aborto: para uns, é crime odioso, imperdoável; para outros, um
direito da mulher. Ou nas ações dos sem-terra - crime comum, para uns,
movimento social, para outros. Ou citemos o professor Joaquim Falcão, que
considera absurdo condenar pessoas por pirataria de músicas - porque isso
implicaria prender ou multar quase todos os jovens do mundo (ver seu
"Transgressões coletivizadas e justiça por amostragem", disponível na
internet). Óculos são decisivos.
Não tenho como chegar a uma conclusão, e lamento. Mas em vários casos, como
no mensalão, convergem o mito e a realidade. Não há como negar que dinheiro
tenha sido desviado, imoralmente, no mensalão. Mas esse fato não se pode
confundir com o mito, direitista, que aponta todo esquerdista como criminoso.
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. E reprovar a invasão pelos americanos de
vários países não quer dizer que os governantes destes últimos fossem gente de
bem. Surpreendo-me que pessoas que se dizem de esquerda admirem o Hamas, Saddam
Hussein ou o governo do Irã. Também elas acreditam em mitos.
Mas será que a exclusão social se faz, pelo menos inicialmente, usando meios
que incluem a corrupção? Roma, no século final da República, é o terrível
exemplo. Quando falha a inclusão social por meio da reforma agrária dos irmãos
Gracos, sucede-se um período longo e turbulento de guerras civis, ao fim das
quais triunfa quem melhor apela ao povo: Júlio César, que extingue a república
e institui o poder de um só. Por outro lado, o comunismo é a grande exceção à
corrupção dita "de esquerda". Dele, falarei em outra coluna. No
fundo, a corrupção parece maior quando a inclusão social é promovida, não por
uma revolução, mas de dentro, por uma fração minoritária da classe dominante
que tem a inteligência de cooptar frações significativas das classes pobres.
Quem lutar pela ética na política tem que sair do mito para entrar na história;
tem que procurar entender esses fenômenos que, aqui, apenas assinalo.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
Fonte:
Valor Econômico
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