O programa Mais Médicos é de responsabilidade exclusiva do governo federal. Foi gerado nas suas entranhas, em sigilo. Só foi revelado à opinião pública quando já estava pronto e acabado. Essa marca não afina com a democracia, no seu mais longo período de vigência em toda a história da república brasileira.
O poder executivo podia ter convocado um debate nacional ou, ao menos, uma discussão técnica extramuros. Mas fez tudo em circuito fechado e despistando os interessados. Recorreu a um instrumento jurídico que viola a integridade da ordem democrática, a Medida Provisória, para colocar a matéria sob o exame apressado do parlamento. Usa agora seu poder de pressão para aprová-la. O debate é tardio e pode ser atalhado pela aprovação no curto prazo legal.
O programa Mais Médicos não é, a rigor, um chamado internacional. Poucos médicos de outros países se interessaram ou poderão vir a se interessar pela oferta do Brasil. Nem o governo brasileiro acredita nessa resposta. A relação é quase exclusiva com Cuba.
As regras para a vinda dos cubanos são exclusivas. Não se estendem aos demais médicos estrangeiros. E são regras, além de estranhas, chocantes, conforme já é do conhecimento público: os profissionais receberão a parte menor do salário que lhes será creditado (não no Brasil, mas em Cuba). Eles também não puderam trazer a família e não terão ao seu alcance o instituto do asilo. Se desistirem, serão devolvidos pelo governo brasileiro ao governo cubano.
O convênio entre o Brasil e Cuba foi avalizado pela Opas, o braço panamericano da Organização Mundial de Saúde, como sendo uma missão humanitária, não uma relação de trabalho regular, como se o Brasil tivesse sido atingido por um furacão ou uma guerra civil, incapaz de responder ao desafio de melhorar o atendimento aos brasileiros desfavorecidos.
O convênio se tornou o aval internacional ao descumprimento das leis brasileiras, do Código Civil à CLT. Em troca do ato humanitário de Cuba, o Brasil aceita que a maior parte do dinheiro fique com o governo cubano, que será o agente principal da relação tríplice. Terá todos os poderes sobre seus cidadãos, mesmo quando em território estrangeiro. Estenderá ao Brasil o modus vivendi e operandi cubano. Nunca se viu nada igual.
Há à esquerda uma legião de pessoas que querem isso mesmo: ajudar Cuba a sobreviver, mantendo-a como parte autônoma e resistente ao imperialismo americano. Se os Estados Unidos criaram um bloqueio ilegal e imoral ao vizinho incômodo, que outros países mais sensíveis compensem essa selvageria tratando de forma excepcional e favorecida o governo cubano, que manteve brilhando essa estrela isolada no continente.
De fato, Cuba é o que é, em boa parte, pela truculência do big stick, o porrete, ao qual a diplomacia americana recorre nos momentos de crise, conflito e desafio (como faz em relação a um novo alvo, a Síria). Legitimidade histórica considerada, porém, ainda assim é evidente que há uma ditadura em Cuba.
Logo, se o Brasil, que é um país democrático, quer retribuir à ação humanitária cubana com certo status especial que lhe confere, precisa agir como um país democrático. Não podia nunca aceitar que o exercício da soberania nacional, que se impõe a partir das suas fronteiras, fosse violado pela criação de uma extensão espúria de uma ditadura em nosso território. Fazendo essa exigência, talvez o Brasil pudesse contribuir para reforçar a pressão pela extinção da ditadura em Cuba, de uma forma mais saudável e segura do que autoriza a precária geopolítica dessa região e aceita o governo dos irmãos Castro.
Que venham os cubanos e ajudem o Brasil a enfrentar a carência de médicos nas suas áreas mais remotas e pobres, mas sob as leis nacionais. Elas se aplicam a todo e qualquer estrangeiro. Nosso país não pode aceitar a existência de um status de exceção, qualquer que seja a sua justificativa, histórica ou humanitária.
Qualquer pessoa menos contaminada por fanatismo e passionalismo de qualquer natureza sabe que esse programa cubano (ou internacional) não passa de um remendo. É situação temporária e efêmera. Produzirá resultados positivos, tanto para a população beneficiada quanto — e, sobretudo — para o governo nesta temporada eleitoral. Mas se não vier uma iniciativa mais consistente, logo o que foi conseguido será desfeito, como um castelo de areia na praia.
Os problemas retomarão seu gigantismo, como já aconteceu quando o PSDB estava no poder e o ministro — muito premiado — era José Serra. Os próprios tucanos, mas, especialmente, seus sucessores, não prosseguiram na ênfase necessária para enfrentar melhor os problemas da saúde do país e da qualificação e distribuição de médicos. O PSDB abriu desbragadamente as portas do Brasil à globalização, internacionalizando ao extremo e danosamente a economia nacional. Mas é uma falácia dizer que o PT adotou um modelo se não inverso, ao menos reequilibrador.
Os petistas possibilitaram um aumento da renda nos escalões sociais inferiores através de medidas compensatórias, como as bolsas, mas mantiveram — e até agravaram — o modelo de dependência e subordinação à ordem internacional. A tal da inclusão dos pobres e o reforço da renda na base da pirâmide social é troco diante do dinheiro público repassado à cobertura da sociedade, onde se multiplicaram bilionários de fachada, dos quais o maior exemplo é o célebre Eike Batista.
A saúde pública e a educação constituem as duas principais acusações à administração petista, cuja retórica não guarda coerência com o resultado do que fez. A desestruturação do setor público nessas duas colunas vertebrais da vida nacional constitui o pano de fundo que realça a precariedade e a transitoriedade desse infeliz programa Mais Médicos.
Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006), Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007), Memória do cotidiano (2008) e A agressão (imprensa e violência na Amazônia) (2008).
Fonte: Jornal Pessoal & Gramsci e o Brasil.
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