- Folha de S. Paulo
O círculo íntimo de Lula abrange apenas dois escudeiros. Paulo Okamotto cuida do caixa; Gilberto Carvalho, da política. Falando à Folha (7/3), o segundo disparou uma ameaça dirigida a Dilma Rousseff e outra ao país inteiro. Com Dilma, funcionou: enquadrada, a presidente reposicionou-se na vanguarda do combate à Lava Jato. Agora, a escolha tornou-se incontornável: é o impeachment ou o triunfo da velha ordem.
Carvalho chamou Dilma a mudar sua agenda econômica, sob pena de acentuar seu "conflito com o partido", e formulou uma sentença de morte condicional: "a sobrevivência dela estaria muito ameaçada se saísse do PT". Quanto ao país, tudo dependeria do "comportamento da Polícia Federal, do Ministério Público e do Judiciário". Há uma linha vermelha: "Se ficar claro que a Lava Jato busca combater a corrupção, não o Lula", ok. Caso contrário, "temo muito um processo que nos leve ao que acontece na Venezuela". Ok?
Nas democracias, o Estado detém o monopólio da força legítima. Nos sistemas autoritários, o regime tem o monopólio da força, que é ilegítima. O regime chavista em declínio conserva o controle sobre o Judiciário, as forças armadas e a polícia, usando-o para calar a imprensa, encarcerar opositores e anular as prerrogativas da maioria parlamentar eleita. Nana, nenê, que a Cuca vem pegar: pronunciando a palavra "Venezuela", Carvalho apela ao discurso mitológico, traçando um paralelo impertinente, mas eficaz.
O Brasil é uma democracia. Mesmo longevo, o governo do PT não se converteu num regime. Temos um Judiciário independente. A polícia e as forças armadas são leais a suas funções constitucionais, não a um partido. A Cuca de Carvalho só pode existir na esfera da imaginação ""mas é nela que investe o porta-voz de Lula. Seu recado dirige-se à parcela da elite política que, temendo a Lava Jato, está disposta a abraçar-se ao lulopetismo sob o pretexto da manutenção da "paz social".
Antes da entrevista de Carvalho, Dilma iniciara a primeira manobra ostensiva contra a Lava Jato: a troca do ministro da Justiça. José Eduardo Cardozo tombou sob a acusação lulista de não "controlar a Polícia Federal", papel que seu substituto deveria desempenhar. Na hora do depoimento de Lula, a presidente avançou o sinal, disparando ácidas críticas à condução coercitiva, decisão judicial questionável por qualquer um exceto a figura que exerce o Poder Executivo. Depois, ela ouviu a mensagem de Carvalho e pintou-se para uma guerra contra o sistema de justiça.
A visita presidencial a Lula, em São Bernardo, um ato oficial de desagravo a um investigado pela justiça, foi seguida pelo jantar em palácio no qual Dilma ofereceu um ministério a seu antecessor. O cargo serviria para alçar Lula acima da jurisdição de Sergio Moro e, ainda, para transformá-lo, oficialmente, em coordenador político de um governo devotado ao combate contra o Judiciário. Na sequência, o investigado reuniu-se com Renan Calheiros, ensaiando unificar a resistência à Lava Jato num bloco político suprapartidário. Segundo um cândido mas eufemístico Calheiros, Lula "falou da necessidade de costurarmos a união nacional".
A oposição errou ao apresentar um pedido de impeachment fundamentado precariamente sobre as "pedaladas fiscais" –e mais ainda ao articular o afastamento de Dilma com Michel Temer, líder de um PMDB consorciado no "petrolão", e Eduardo Cunha, o homem das contas na Suíça. O cenário, hoje, é outro. Nas múltiplas evidências recentes do financiamento das campanhas de Dilma, em 2010 e 2014, por dinheiro oriundo da corrupção encontram-se motivos suficientes para o impeachment. Contudo, a urgência da remoção de Dilma decorre da operação criminosa em curso: a transformação do Planalto na sede de um poder ilegal, consagrado à obstrução da justiça. Impeachment já, pois o Brasil não é a Venezuela.
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