Em um mesmo dia, o governo apresentou dois números diferentes de vítimas da covid-19
O governo de Jair Bolsonaro não apenas se eximiu de conduzir o combate ao novo coronavírus como se moveu sem parar para dificultar os passos daqueles a quem restou a tarefa de enfrentar uma doença altamente contagiosa. A atitude macabra de esconder e omitir dados abrangentes e detalhados sobre a pandemia é mais uma na escalada de barbaridades capitaneadas pelo presidente.
O coronavírus foi um desastre para o mundo e para os brasileiros - mais de 37 mil mortos até ontem - e devastador para as aspirações de Bolsonaro de se reeleger com pouco esforço. Qualquer político minimamente inteligente procuraria combater o contágio para abreviar o período de parada súbita da economia. Se fizesse isso, Bolsonaro teria feito a coisa certa em uma hora terrível para a nação e poderia até ganhar tração eleitoral.
Como a razão fugiu correndo pelos fundos quando Bolsonaro subiu a rampa principal do Palácio do Planalto, as ações do presidente se chocaram com a realidade - o conjunto da obra em progresso é tenebroso. O presidente viu na rápida disseminação do vírus e na política de distanciamento social executada com maior ou menor afinco pelos governadores, a oportunidade política obtusa de desdenhar da doença e atribuir a vários políticos que vê como concorrentes nas urnas (João Doria, de São Paulo e Wilson Witzel, do Rio) a responsabilidade pelo desastre econômico subsequente.
Essa interpretação delirante, que não deixou espaço sequer para fiapos de solidariedade humana, pautou a série de atos para boicotar o trabalho de vida e morte contra a pandemia. Em vez de dar o exemplo esperado de quem ocupa o cargo, o presidente disse que o vírus não era nada e que todo mundo morre um dia (“E daí?”). Não perdeu tempo para misturar-se a seus apoiadores, recusando-se a usar máscara e a impedir aglomerações.
A rotina do poder deve causar tédio a Bolsonaro, para quem governar é criar atritos com tudo e com todos. Uma das vítimas foi seu ministro da Saúde, Luiz Mandetta, de cuja popularidade se enciumou. Nelson Teich, sucessor de Mandetta, não resistiu um mês, saiu sem dizer os motivos, mas era patente que tinha se enganado ao entrar no hospício em que se transformou o ministério - exibido ao vivo e em cores na reunião de 22 de abril.
O terceiro ministro da Saúde é um militar cumpridor de ordens, que loteou o ministério com mais duas dezenas de companheiros de armas, após recomendar um protocolo médico pelo uso da cloroquina até mesmo em casos leves da covid-19. Um especialista em gestão, o empresário Carlos Wizard, foi convocado, disse que o número de mortes foi inflado, sugeriu uma recontagem, provocou espanto e indignação e escafedeu-se.
Com um ministro interino na Saúde, as mortes na pandemia mudaram de ritmo - mais de 1 mil por dia - e ainda não atingiram seu pico. Parte da elevada conta está sendo cobrada do presidente, depois de tantos e ininterruptos desatinos. O Brasil caminha para o segundo lugar em número de mortos e casos confirmados, atrás dos Estados Unidos - dois países liderados por negacionistas de primeira hora, Trump e Bolsonaro.
O presidente, no entanto, não gostou dessa publicidade unanimemente negativa, que o tornou objeto de ojeriza internacional. Os boletins oficiais, documentos que seguem métodos e padrões aceitos e usados internacionalmente para a contabilidade da pandemia, começaram a atrasar, o que nunca havia ocorrido. Quando ressurgiram, não traziam o número acumulado de mortos e contaminados e continham nova forma de apresentar os óbitos em 24 horas. Em um mesmo dia, o governo apresentou dois números diferentes de vítimas da covid-19.
A manobra é bizarra, mas não suas consequências. Deter o rastro de mortes do vírus, localizá-lo e isolá-lo depende muito de estatísticas as mais detalhadas e abrangentes possíveis. Além disso, as estatísticas são indispensáveis para que a estratégia de abertura do confinamento possa ser bem-sucedida, ao orientar o planejamento das ações. Um pool de jornais (O Globo, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, Extra e os portais G1 e UOL) se propôs a suprir números que se tornaram pouco confiáveis nas mãos do governo.
Após a atrocidade com os números, Bolsonaro provavelmente atribuirá mais uma tentativa de imputar-lhe crime de responsabilidade à perseguição política e não ao jogo de vale-tudo que resolveu jogar em meio a um morticínio raramente visto e à maior recessão da história brasileira.
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