- Valor Econômico (11/06/2020)
Nem o presidente Jair Bolsonaro tem condições de patrocinar um autogolpe nem a oposição tem forças para tirá-lo do governo
Nem o presidente Jair Bolsonaro tem condições de patrocinar um autogolpe nem a oposição tem forças para tirá-lo do governo. As lideranças que promovem manifestações apostam que o desempate vai se dar nas ruas. Podem ter razão, mas a ocupação das ruas que mais ameaça o governo hoje é aquela que se dá por aqueles que não têm e, cada vez mais, não terão, onde morar.
Nas instituições capazes de conduzir a abreviação do mandato do presidente cresce a percepção de que as condições para isso só estarão dadas quando a curva dos despejados na rua se encontrar com aquela dos amontoados nas valas da pandemia.
Só o encontro dessas duas tragédias pode ser capaz de acender a fagulha necessária à combustão do processo. Esta percepção disparou outra leva de mensagens de robôs bolsonaristas colocando a culpa do desemprego sobre governadores e prefeitos, manobra que ainda custa a se provar eficaz, visto que é sobre os presidentes que a cobrança pela penúria econômica costuma recair.
O ataque virtual, a saia justa dos governadores frente à atuação das polícias militares na repressão aos manifestantes e, por fim, a ofensiva da Polícia Federal que vai do desbaratamento de fraudes com ventiladores à retirada da poeira de antigos aliados, como o governador Wilson Witzel, debaixo do tapete, são parte da estratégia do presidente de mitigar a frente ampla contra seu mandato.
O encontro marcado das duas curvas da tragédia social levou ainda o presidente da República a trazer de volta à pauta a criação de um programa de renda universal. Ao constatar que o auxílio emergencial ajuda, de fato, a blindagem do que lhe resta de popularidade entre os mais pobres, Bolsonaro quer um Bolsa Família pra chamar de seu, de valor superior ao do programa petista e inferior ao benefício criado na pandemia.
Pesam contra sua criação, além da inépcia gerencial do governo, capaz de amontoar filas de espera enquanto agracia com o benefício oito milhões de brasileiros de classe média, a crença quase religiosa de que só a obsessão fiscal salva. Na contramão do resto do mundo, que além de não poupar gastos para mitigar os efeitos da crise, já começa a encarar a necessidade de tornar suas estruturas tributárias mais justas, o Brasil resiste a um e a outro.
O governo parece iludido de que será capaz de instituir cobranças de contribuições previdenciárias de aposentados e pensionistas que ganham abaixo do teto do INSS ou mesmo reduzir salário do funcionalismo, como se uma e outra medida fossem viáveis politicamente.
O presidente da Câmara estimula o governo a avançar na proposta, desde que atinja todo o funcionalismo. Rodrigo Maia retribui as armadilhas colocadas pelo presidente no campo minado em que se transformou a República. Se for adiante em sua proposta, o presidente corre o risco de engrossar as manifestações com servidores e aposentados que se transformaram, mais do que nunca, nesta pandemia de desempregados, em arrimos de família.
Até aqui, Bolsonaro tem reagido às manifestações com a parcimônia de quem aguarda que ganhem corpo e se descontrolem, espontânea ou provocadamente. Se, no futuro, as manifestações podem vir a crescer e desestabilizar o governo hoje elas revelam a prevalência da prática política bolsonarista de dar primazia ao embate sobre o isolamento social.
A parcimônia bolsonarista não se restringiu à sua postura em relação aos manifestantes. Aparenta recuo ao prestigiar ministros de tribunais superiores. Marcou presença virtual na posse de Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral e no voto do ministro Bruno Dantas sobre as contas de seu primeiro ano, no TCU.
O presidente ainda recuou no boicote do Ministério da Saúde à divulgação dos dados da covid-19 e encenou uma reunião ministerial comportada. Face a informações de pesquisas qualitativas, como aquelas colhidas por detalhado estudo de Esther Solano, de que o erro imperdoável, para o eleitor fiel, é a insensibilidade bolsonarista frente ao sofrimento da pandemia, o presidente tentou se mostrar preocupado com a doença. Foi ofuscado, no entanto, pelo desempenho do ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que alinhou o Brasil setentrional ao regime climático do Hemisfério Norte.
A estratégia de contenção do presidente passou ainda por duas operações no front militar. A primeira foi o envio do ministro da Defesa à casa do ministro Alexandre de Moraes, em São Paulo, onde Fernando Azevedo e Silva teria demonstrado discordância da interpretação do artigo 142 da Constituição feito pelo jurista Ives Gandra Martins sob o aplauso do ministro Augusto Heleno.
A segunda foi a revogação da portaria que liberava a operação de aviões pelo Exército, medida que não apenas não foi capaz de cooptar os generais da ativa, como despertou reação da Aeronáutica, jogando por terra a fantasia de um apoio militar a um autogolpe.
A operação-recuo se completou com o envio do ministro da secretaria-geral da Presidência, Jorge Oliveira, à casa de Rodrigo Maia e de Alexandre de Moraes. Candidato à primeira vaga do Supremo, o ministro tem hoje o cargo mais cobiçado da Esplanada. Ao nomear Walter Braga Netto para a Casa Civil, Bolsonaro também chancelou a mudança que tirou do seu gabinete e transferiu para o da Secretaria-Geral, a Subsecretaria de Assuntos Jurídicos.
É lá que são preparados os atos e nomeações que o presidente assina. E cabe ao ministro que a chefia a atribuição de traduzir para o presidente as nuances daquilo que terá sua chancela. Para muitos daqueles que ocupam a cúpula das instituições, o exercício do poder não se completa sem a capacidade de influenciar nomeações que dependem da assinatura presidencial.
Ao recuo presidencial também correspondeu uma reação de compasso de espera dos Poderes, principalmente daquele que está com a bola no pé. O presidente do Supremo, Dias Toffoli, aproveitou uma pequena cirurgia para drenagem de um abcesso e sumiu de cena por duas semanas. Ao voltar, pôs água na fervura.
Durante sua convalescença, no entanto, Toffoli compareceu a um jantar na casa de um advogado em Brasília. O encontro, que também reuniu Rodrigo Maia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e os ministros Luis Roberto Barroso (TSE) e Bruno Dantas (TCU), convergiu na avaliação de que este recuo do presidente é tático e que o impeachment ainda não está maduro. Concordaram não apenas que a porta de saída do TSE deve se manter aberta quanto na percepção de que o vice-presidente Hamilton Mourão articula-se intensamente para fechá-la.
Como estão sob o mesmo diapasão, devem, como costuma dizer Barroso, empurrar a história no mesmo rumo. Mas tem um semestre inteiro para ser consumido em encontros do gênero. O futuro demora muito.
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