segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Demétrio Magnoli - Lei da vacina

- O Globo

No caso da Covid, o argumento para a obrigatoriedade legal é avassalador

A vacinação no Brasil é, teórica e parcialmente, obrigatória. O Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece a obrigatoriedade para o conjunto de vacinas infantis recomendadas pelas autoridades sanitárias. Mas isso só em tese, pois inexistem penalidades definidas para os pais que violam a lei. O movimento antivacinal, ainda incipiente no país, tende a crescer sob o impulso do misticismo conspiratório bolsonarista. Há, portanto, boas razões para discutir a oportunidade de legislar penalidades efetivas. Mas, no caso específico da Covid-19, o Congresso tem o dever inadiável de impor a imunização geral compulsória.

Desde o outono do século 19, a vacinação em massa propiciou o controle de inúmeras doenças transmissíveis. A imunidade coletiva completa não exige a cobertura da totalidade da população, mas de algo em torno de 70%. Por isso, felizmente, as sociedades podem conviver com a presença de minorias significativas que não aderem aos programas de vacinação. Ironicamente, tais grupos beneficiam-se indiretamente da vacina aplicada à maioria dos cidadãos. Mas a saúde pública degrada-se, com a difusão de epidemias evitáveis, quando o universo de ignorantes, idiotas e místicos ultrapassa a marca dos 30%.

Isso começa a ocorrer no Brasil. Desde 2015, nove das dez vacinas obrigatórias até o primeiro ano de vida registram coberturas inferiores às recomendadas pela OMS. O problema se estende às vacinas que devem ser tomadas antes dos 30 anos. Mais de 300 cidades não alcançaram 50% de cobertura contra a poliomielite em 2018. Já o sarampo, erradicado em 2016, voltou à Amazônia dois anos depois, devido à baixa taxa de aplicação da dose de reforço. A crise tende a se agravar, sob o impulso de um governo que flerta com o movimento antivacinal.

Nos EUA, o movimento antivacinal está organizado em todos os estados. A estranha coalizão reúne cristãos fundamentalistas (“Deus decide sobre a vida e a morte”), naturistas (“meu corpo é um templo intocável”) e libertários de inclinações conspiratórias (“a vacina é um veneno inoculado pelo Estado”). Donald Trump chegou a receber representantes do movimento e, em tuítes esparsos, deu curso à lenda que conecta autismo e vacinação. O bolsonarismo, que macaqueia a extrema-direita americana, já elegeu a “vacina chinesa” como alvo de suas campanhas de idiotização dos brasileiros.

Anthony Fauci, infectologista-chefe, teme que mais de um terço dos americanos rejeitem vacinar-se contra a Covid em 2021. Na Rússia, pesquisas sugerem que essa parcela representa 50% da população. O Brasil, que tem sólida tradição de vacinação, precisa evitar o pior, agindo rápido.

O Estado tem o dever de optar pela persuasão, em detrimento da força, sempre que possível. Mas, no caso das futuras vacinas para a Covid, o argumento para a obrigatoriedade legal é avassalador. Sob a emergência sanitária, as autoridades ordenaram o fechamento dos setores econômicos “não essenciais”, provocando extensivas falências e desemprego em massa. Como explicar aos comerciantes e seus funcionários que, em nome das convicções íntimas da minoria antivacina, eles podem enfrentar novas ordens de quarentena?

Durante a pandemia, as autoridades impuseram restrições inéditas às liberdades dos cidadãos. As crianças e jovens viram cancelado seu direito à educação. Pacientes experimentaram longos adiamentos de cirurgias eletivas. Limitou-se o direito universal de ir e vir, cassou-se a prerrogativa de frequentar parques, praças e praias. As pessoas são obrigadas a cobrir o rosto com máscaras — inclusive, ridiculamente, em espaços públicos abertos e vazios. Como justificar, em nome da ideologia de fanáticos ou das crenças místicas dos malucos, a permanência do cenário de exceção?

A vacinação contra a Covid precisa ser compulsória para todos os grupos populacionais definidos pelas autoridades sanitárias. Não no papel, de mentirinha, mas na prática, sob pena de multas punitivas e de drásticas restrições de acesso aos locais e serviços públicos. O Congresso tem que agir, pois o governo torce pelo vírus.

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