No
caso da Covid, o argumento para a obrigatoriedade legal é avassalador
A
vacinação no Brasil é, teórica e parcialmente, obrigatória. O Estatuto da
Criança e do Adolescente estabelece a obrigatoriedade para o conjunto de
vacinas infantis recomendadas pelas autoridades sanitárias. Mas isso só em
tese, pois inexistem penalidades definidas para os pais que violam a lei. O
movimento antivacinal, ainda incipiente no país, tende a crescer sob o impulso
do misticismo conspiratório bolsonarista. Há, portanto, boas razões para discutir
a oportunidade de legislar penalidades efetivas. Mas, no caso específico da
Covid-19, o Congresso tem o dever inadiável de impor a imunização geral
compulsória.
Desde
o outono do século 19, a vacinação em massa propiciou o controle de inúmeras
doenças transmissíveis. A imunidade coletiva completa não exige a cobertura da
totalidade da população, mas de algo em torno de 70%. Por isso, felizmente, as
sociedades podem conviver com a presença de minorias significativas que não
aderem aos programas de vacinação. Ironicamente, tais grupos beneficiam-se
indiretamente da vacina aplicada à maioria dos cidadãos. Mas a saúde pública
degrada-se, com a difusão de epidemias evitáveis, quando o universo de
ignorantes, idiotas e místicos ultrapassa a marca dos 30%.
Isso
começa a ocorrer no Brasil. Desde 2015, nove das dez vacinas obrigatórias até o
primeiro ano de vida registram coberturas inferiores às recomendadas pela OMS.
O problema se estende às vacinas que devem ser tomadas antes dos 30 anos. Mais
de 300 cidades não alcançaram 50% de cobertura contra a poliomielite em 2018.
Já o sarampo, erradicado em 2016, voltou à Amazônia dois anos depois, devido à
baixa taxa de aplicação da dose de reforço. A crise tende a se agravar, sob o
impulso de um governo que flerta com o movimento antivacinal.
Nos
EUA, o movimento antivacinal está organizado em todos os estados. A estranha
coalizão reúne cristãos fundamentalistas (“Deus decide sobre a vida e a
morte”), naturistas (“meu corpo é um templo intocável”) e libertários de
inclinações conspiratórias (“a vacina é um veneno inoculado pelo Estado”).
Donald Trump chegou a receber representantes do movimento e, em tuítes
esparsos, deu curso à lenda que conecta autismo e vacinação. O bolsonarismo,
que macaqueia a extrema-direita americana, já elegeu a “vacina chinesa” como
alvo de suas campanhas de idiotização dos brasileiros.
Anthony
Fauci, infectologista-chefe, teme que mais de um terço dos americanos rejeitem
vacinar-se contra a Covid em 2021. Na Rússia, pesquisas sugerem que essa
parcela representa 50% da população. O Brasil, que tem sólida tradição de
vacinação, precisa evitar o pior, agindo rápido.
O
Estado tem o dever de optar pela persuasão, em detrimento da força, sempre que
possível. Mas, no caso das futuras vacinas para a Covid, o argumento para a
obrigatoriedade legal é avassalador. Sob a emergência sanitária, as autoridades
ordenaram o fechamento dos setores econômicos “não essenciais”, provocando
extensivas falências e desemprego em massa. Como explicar aos comerciantes e
seus funcionários que, em nome das convicções íntimas da minoria antivacina,
eles podem enfrentar novas ordens de quarentena?
Durante
a pandemia, as autoridades impuseram restrições inéditas às liberdades dos
cidadãos. As crianças e jovens viram cancelado seu direito à educação.
Pacientes experimentaram longos adiamentos de cirurgias eletivas. Limitou-se o
direito universal de ir e vir, cassou-se a prerrogativa de frequentar parques,
praças e praias. As pessoas são obrigadas a cobrir o rosto com máscaras —
inclusive, ridiculamente, em espaços públicos abertos e vazios. Como
justificar, em nome da ideologia de fanáticos ou das crenças místicas dos
malucos, a permanência do cenário de exceção?
A
vacinação contra a Covid precisa ser compulsória para todos os grupos
populacionais definidos pelas autoridades sanitárias. Não no papel, de
mentirinha, mas na prática, sob pena de multas punitivas e de drásticas
restrições de acesso aos locais e serviços públicos. O Congresso tem que agir,
pois o governo torce pelo vírus.
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