Jamais
se viu isso
Nunca
antes na história deste país um presidente da República revelou com
antecedência como deverá votar ministro indicado por ele para o Supremo
Tribunal Federal. Pois foi o que fez, ontem à noite, Jair Bolsonaro a pretexto
de defender o desembargador Kássio Nunes Marques, que não foi sequer sabatinado
ainda no Senado como manda a lei. Sua nomeação depende disso.
Em
sua conta no Facebook, Bolsonaro irritou-se com o comentário de um leitor
insatisfeito com a escolha de Kássio: “Presidente, próxima indicação ao STF
indica o Lula”. Primeiro, ele respondeu assim: “Ele tem mais de 65 anos. Estude
e se informe antes de acusar as pessoas”. Em seguida, para alegria do Centrão,
disse que a nomeação de Kássio “é completamente sem volta”.
Acrescentou:
“Kassio é contra o aborto (votará contra a ADPF 442 caso seja pautada). É
pró-armas nos limites da lei (ele é CAC). Defende a família e as pautas
econômicas (quem duvida que aguarde as votações). Resumindo, ele está 100%
alinhado comigo”. A ADPF 442 é a ação que tramita no Supremo pedindo a
descriminalização do aborto. CAC é colecionador de armas.
Faltou dizer como Kássio votará o pedido de suspeição de Sérgio Moro que, segundo a defesa de Lula, comportou-se de modo parcial no processo do tríplex do Guarujá; as ações contra a Lava Jato; e o caso do senador Flávio Bolsonaro denunciado pelo Ministério Público do Rio por lavagem de dinheiro, organização criminosa e expropriação do salário de servidores públicos.
Bolsonaro
ocupou grande parte do seu domingo a oferecer explicações nas redes sociais
para seus devotos que não engoliram a nomeação do novo ministro. Em maio do ano
passado, o desembargador Kássio liberou uma licitação do Supremo para a compra
de lagostas e vinhos caros, derrubando a decisão de uma juíza federal que a
vetara. Um devoto escreveu:
–
Péssima escolha. Está criando cobras que lhe darão o bote.
Bolsonaro
retrucou: “Aguarde, outra mentira”. Outro devoto lembrou o voto de Kássio
contra a extradição para a Itália do terrorista Cesare Battisti, acusado por
quatro assassinatos e que agora cumpre prisão perpétua. Bolsonaro retrucou:
“[Kássio] participou de julgamento que tratou exclusivamente de matéria
processual e não emitiu opinião ou voto sobre a extradição”.
Foi
lacônico quando outro dos seus seguidores perguntou por que no sábado à noite
ele foi à casa do ministro Dias Toffoli, do Supremo, comer pizza e assistir ao
jogo do Palmeiras contra o Ceará: “Preciso governar. Converso com todos em
Brasília. Um abraço”. Parte do domingo de Toffoli também foi gasto com
respostas à pergunta se fez certo em confraternizar com Bolsonaro.
“Eu
sou um cara que gosta de unir as pessoas, que todo mundo se divirta.
Confraternizar. Foi uma confraternização, ninguém falou de trabalho. Não
estávamos aqui para discutir assunto sério”, disse o ministro. Nos bastidores,
ele tem dito que é preciso manter a harmonia entre os Poderes e que não há
nenhum prejuízo de que a cúpula deles se reúna com alguma frequência.
Quanto
mais Toffoli tenta justificar a cena de promiscuidade explícita com Bolsonaro,
mais escandalosa ela fica. Só grandes amigos se abraçam com tanto carinho. Isso
nada tem a ver com harmonia entre os Poderes. Impensável que um ministro da
mais alta Corte de justiça seja tão íntimo do presidente da República que pode
justamente ser alvo de muitas de suas decisões.
Nada
faltou na cena reveladora das entranhas do poder que serviu para reforçar a
convicção de que a independência dos tribunais é coisa para inglês ver. Toffoli
e Bolsonaro sem máscara em meio à pandemia; abraçados quando se recomenda o
distanciamento; à porta da casa do ministro e não dos gabinetes oficiais de um
ou do outro; observados por um policial sem máscara.
À
tiracolo de Bolsonaro, Kássio, focado em conquistar a simpatia dos futuros
colegas e o voto dos senadores que poderão lhe abrir as portas do tribunal.
Presente ao regabofe, Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado. É ele que
presidirá a sessão para aprovação do nome de Kássio. Empenhado em se reeleger,
suplica ajuda a Bolsonaro e faz tudo para agradá-lo.
São
favas contadas no Senado a aprovação de Kássio. A sabatina será mera
formalidade. Desde sua fundação no século XIX, o Senado só recusou cinco
indicações para ministro do Supremo, todas feitas por Floriano Peixoto, o
segundo presidente da República do Brasil que passou à história como “o
marechal de ferro”, tantas foram as revoltas que esmagou durante seu governo.
No
final de maio último, um dia depois de o Supremo fechar o cerco contra o
“gabinete do ódio” comandado pelo vereador Carlos, o Zero Dois, Bolsonaro
perdeu as estribeiras e afirmou que “ordens absurdas não se cumprem”. Em tom
exaltado, criticou a operação da Polícia Federal que atingiu seus aliados no
âmbito do inquérito das fake news. Por fim, gritou: “Acabou, porra!”.
De lá para cá, trocou de arma. Descobriu que a melhor forma de vencer o Supremo é cooptar o maior número possível dos seus integrantes, expondo suas fraquezas. Está se dando bem até aqui.
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