Desfazer
o legado nefasto de Donald Trump e unir um país rachado ao meio não
Ao
meio-dia de hoje, horário de Washington, Joseph Robinette Biden Jr. proferirá
as 35 palavras do juramento que marca o início de seu mandato como 46º presidente
dos Estados Unidos. Sob rígidas medidas de segurança, tomadas para evitar tanto
a violência das hostes trumpistas quanto o contágio pelo novo coronavírus,
assumirá como presidente de um país dividido ao meio, depois daquela que já
entrou para a história como uma das piores — senão a pior — administração na
história americana. Desfazer o legado de Donald Trump, tarefa já em si
complexa, será ainda mais difícil diante do recrudescimento da pandemia que até
agora matou 400 mil americanos e paralisa a economia.
Os
Estados Unidos são o único país a superar o Brasil no ranking macabro das
mortes por Covid-19. O desafio mais urgente de Biden, portanto, é começar a
trabalhar contra o vírus, em vez de, como Trump, a favor dele. Mas não será o
principal. O mais difícil para o novo presidente será resgatar um mínimo de
unidade nacional. No discurso de posse, ele dirá o oposto do que foi dito há
quatro anos. Em vez da “carnificina americana” de Trump, Biden fará eco à
mensagem de união proclamada por outro presidente quando tomou posse num país
também dividido, 160 anos atrás: Abraham Lincoln, com seu célebre apelo aos
“melhores anjos de nossa natureza”.
Precisará
mesmo de ajuda dos céus e dos anjos. Um terço dos americanos não acredita que
ele foi o vencedor legítimo das eleições de novembro (dois terços entre os
republicanos). Sua vitória, pelas regras do convoluto sistema eleitoral
americano, foi ainda mais apertada que a de Trump há quatro anos (por 45 mil
votos nos estados decisivos, em vez de 77 mil). No Congresso, quase 150
deputados e senadores endossaram a versão estapafúrdia trumpista de que a
eleição foi roubada.
A
maioria democrata na Câmara é apertada (cinco cadeiras) e, no Senado, dependerá
do voto de desempate da vice-presidente Kamala Harris. Ainda que os
republicanos tenham adiante um doloroso acerto de contas a fazer com o
trumpismo, dispõem de força política considerável para atrapalhar as
iniciativas de Biden. Exatamente metade dos americanos crê que ele tomará as
decisões corretas para o país, constatou uma pesquisa do Washington Post com a
ABC News. Mas a outra metade, não.
Logo
de cara, o Senado terá de julgar Trump no processo de impeachment pela
incitação à violência no Capitólio no último dia 6. Não será exatamente uma
situação que enseje a conciliação e a união que Biden pregará na posse. Toda a
agenda inicial do governo é constituída por temas que polarizam os americanos:
imigração, mudanças climáticas, desigualdade racial, o multilateralismo no
cenário internacional e um pacote econômico de quase US$ 2 trilhões para
combate à pandemia.
No primeiro dia, Biden pretende assinar uma dúzia de decretos, parte deles desfazendo absurdos da gestão Trump. O foco principal será a imigração, com o cancelamento do veto a viajantes de países de maioria muçulmana e das políticas escandalosas que separam crianças das famílias na fronteira com o México. Também haverá nova adesão ao acordo climático de Paris, extensão do perdão às dívidas estudantis e o estabelecimento da obrigatoriedade do uso de máscaras em edifícios do governo federal e em viagens interestaduais. No Legislativo, as prioridades serão a aprovação do pacote de combate à pandemia e a garantia de um caminho viável para conceder a cidadania americana a 11 milhões de imigrantes que entraram ilegalmente no país.
Pela
primeira vez desde 1869, quando Andrew Johnson esnobou a posse de seu sucessor,
o general Ulysses Grant, o presidente que sai não comparecerá à posse do que
chega. A equipe de Biden enfrentou obstáculos gigantescos durante o período de
transição e já sabe que encontrará um cenário de terra arrasada assim que
assumir o comando da Casa Branca.
Nenhuma
das dificuldades que enfrentará será tão grande quanto o dano causado por Trump
à verdade. Pela conta do “Washington Post”, foram mais de 30 mil mentiras.
Trump elegeu como inimigos a imprensa profissional, a academia, os cientistas e
especialistas em todas as áreas do conhecimento. Tratou de incentivar os tais
“fatos alternativos” e contribuiu para criar uma realidade paralela em que hoje
vivem dezenas de milhões de americanos, com seguidores no mundo todo, em
particular no bolsonarismo.
As teorias da conspiração que alimentam esse universo se estendem para muito além da contestação do resultado eleitoral. Atingem vacinas, uso de máscaras na pandemia e a saúde pública. Desdenham as mudanças climáticas e os riscos dos combustíveis fósseis para o futuro do planeta. Proclamam um culto às armas e ao individualismo extremo. Em nome da defesa de uma pretensa “civilização ocidental”, promovem uma ideologia racista, antissemita e islamófoba, cujo pendor violento e antidemocrático ficou evidente na turba que invadiu o Capitólio e deixou cinco mortos. A posse de Biden não encerrará esse capítulo sombrio da história humana. Traz apenas a esperança de um novo começo.
Joe Biden mudará marcha na América Latina – Opinião | The Economist
Presidente
dos EUA vai encontrar uma região em que o populismo floresceu recentemente com
mais força
- O Estado de S. Paulo
Em
2013, depois que o WikiLeaks revelou que a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos grampeou
o telefone de Dilma Rousseff, então presidente do
Brasil, Joe Biden ligou para se
desculpar. Um anos depois, o vice-presidente americano foi ao Brasil assistir a
uma partida da Copa do Mundo com um presente: documentos secretos tornados
públicos que evidenciavam abusos da ditadura militar brasileira (1964-85).
A própria Rousseff foi torturada.
Rousseff qualificou Biden como “um vice-presidente sedutor”. Outros líderes latino-americanos não pensavam o mesmo. Otto Pérez Molina, ex-presidente da Guatemala, lamenta o dia em que se curvou à pressão de Biden para prolongar a vida da Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (Cicig), uma agência de combate à corrupção apoiada pela ONU. Pérez Molina expressou esse lamento em 2015, dentro de uma prisão militar, onde aguardava julgamento por acusações de corrupção. A Cicig forneceu as provas.
Uma
vez que Biden assumir o posto mais alto, não seria uma surpresa se seu
interesse na América Latina minguasse, dadas
as outras demandas que pesam sobre ele. A única anedota memorável a respeito da
região no novo livro de memórias de Barack Obama é sua confissão de
que apenas “sorria e assentia com a cabeça” durante um longo jantar, em 2011,
pensando a respeito da guerra na Líbia enquanto o presidente
do Chile discorria a respeito de
exportações de vinho.
Ainda assim, Biden provavelmente dará atenção à América Latina. Ele era o homem de Obama para a região, que visitou 16 vezes. Emergências regionais, da migração em massa à cada vez mais fechada ditadura na Venezuela, exigirão sua consideração. Ele não tem o estilo intimidador de Donald Trump. Promoverá o estado de direito e esforços para combater as mudanças climáticas, preocupações que Trump ignorava categoricamente. Este ano, Biden deverá ser o anfitrião da trienal Cúpula das Américas.
A
América Latina mudou desde quando ele foi vice-presidente. Um fraco crescimento
econômico minou a autoconfiança da região. A pandemia matou 541 mil pessoas na América Latina e no Caribe,
um número de mortes superado apenas pelo da Europa, e causou a pior crise
econômica em mais de um século. Os corruptos estão vencendo a guerra contra a
corrupção. Descontentamentos a respeito de contratos sociais violados
ocasionaram instabilidade e a eleição de presidentes populistas. Os
venezuelanos estão fugindo de seu país, o que coloca pressão sobre os vizinhos.
O êxodo da América Central, pausado pela pandemia, foi retomado.
A democracia está em
retrocesso. A Bertelsmann
Foundation, que organiza uma escala de 10 pontos relativa à
força da democracia nos países, revela que as pontuações de sete democracias da
América Latina caíram 0,8 ponto ou mais desde 2010. Recentemente, o Congresso
do Peru impediu o segundo presidente
em 30 meses. Nayib Bukele, presidente de El Salvador, lançou as bases para uma
ditadura. As eleições de 2021, a serem realizadas em países como Equador, Peru
e Nicarágua, podem levar populistas ao poder ou consolidar governos
autoritários.
Quando
Trump assumiu a presidência, em 2017, os governos da América Latina sofreram
com um “medo de chamar a atenção”, afirma um ex-conselheiro da administração.
Mas muitos passaram a gostar de Trump, em grande parte porque ele os deixava em
paz, a não ser que permitissem a passagem de imigrantes para os EUA. O
interesse dele em promover a democracia não ia além dos limites da “tríade da
tirania” — Cuba, Nicarágua e Venezuela. Jair Bolsonaro, do Brasil, e Andrés Manuel López Obrador,
do México, populistas de direita e de esquerda, respectivamente, sentiram uma
afinidade por ele (Bolsonaro é um fã desavergonhado). Ambos esperaram um mês
para reconhecer que Biden o havia derrotado.
O
mundo de Biden considera equivocada uma visão que restringe a promoção da democracia
a três países. Compartilha do consenso pré-Trump segundo o qual a estabilidade
na vizinhança depende do estado de direito, de uma sociedade civil forte e de
um capitalismo mais justo. Buscará maneiras de controlar a imigração mais
humanas do que obrigar países a bloquear a passagem de imigrantes pelo seu
território.
Biden
quer retomar a possibilidade de pedidos de asilo nos EUA. Atualmente, o governo
Trump força aqueles que chegam à fronteira a ficar no México. Biden deverá
desfazer os pactos de Trump com os três países do Triângulo Norte da América Central — Guatemala, Honduras e El Salvador —
segundo os quais os EUA podem enviar imigrantes de volta a esses países. Esse
processo será vagaroso. Um objetivo mais nobre é tornar o Triângulo Norte um
lugar melhor para viver. Juan Gonzalez, que integrará o Conselho de Segurança
Nacional, foi voluntário do Corpo de Paz nas montanhas da Guatemala, origem de
muitos imigrantes. Biden pretende gastar US$ 1 bilhão ao ano para melhorar as
condições da América Central.
Ele
terá de usar o porrete e a cenoura. A corrupção está cada vez pior no Triângulo
Norte. Parlamentares guatemaltecos enxotaram a Cicig; legisladores fecharam a
homóloga Missão Contra a Corrupção e a Impunidade em Honduras (Maccih). Trump
não se manifestou. Este mês, promotores americanos apontaram o presidente
hondurenho, Juan Orlando Hernández, como participante de um esquema de tráfico
de drogas (ele nega). O caso evidencia as limitações relativas ao gasto com
segurança e estímulos econômicos quando o estado de direito é fraco, afirmou
Eric Olson, do centro de estudos estratégicos Wilson Centre.
Biden
vai retomar a luta por melhor governança. Embaixadores americanos farão pressão
sobre governos para nomear juízes e funcionários honestos. O governo Biden
deverá propor o estabelecimento de uma agência anticorrupção que dê conta de
toda a América Central, que apoiaria promotores e procuradores-gerais, mas que
seja menos invasiva do que a Cicig e a Maccih. Uma lição da bem-sucedida política
de intimidação de Trump a respeito da migração é que os EUA têm grande poder de
barganha na região.
A
abordagem de Biden em relação à tríade da tirania será menos punitiva, dando
aos países menos desculpas para o desgoverno. Como Trump, ele considera o venezuelano Nicolás Maduro um tirano.
Mas ele tende a ser menos ameaçador, trabalhar mais com outros poderes e buscar
maneiras de aliviar a crise humanitária.
Antony
Blinken,
o indicado de Biden para secretário de Estado, ajudou a normalizar as relações
com Cuba quando foi conselheiro de Obama. Biden vai renovar essa política
cautelosamente, aliviando restrições relativas a remessas de dinheiro e turismo.
A decisão do governo Trump desta semana de recolocar Cuba na lista dos países
que patrocinam o terrorismo, juntamente com Irã, Síria e Coreia do Norte, eleva
os custos políticos da reaproximação. Obama retirou Cuba dessa lista em 2015.
As
mudanças climáticas serão uma nova fonte de rancor. López Obrador, que defende o
monopólio estatal sobre o petróleo no México e rejeitou projetos americanos de
energia renovável, enfrentará a pressão verde de Washington. Assim como
Bolsonaro, que permitiu a aceleração da destruição da Floresta Amazônica. Biden
pretende criar um fundo de US$ 20 bilhões para proteger a Amazônia, mas o
Brasil, que interpreta iniciativas do tipo como afrontas à sua soberania, até
agora tem rejeitado a ideia. As relações entre Biden e Bolsonaro, que louva o
regime que torturou Rousseff, deverão ser difíceis.
Para
Bolsonaro e alguns outros líderes da região, a mudança de rumo em Washington
deve causar um solavanco. Alguns dirão que os EUA não estão em posição, hoje em
dia, de repreender outros países. Mas, afirma um conselheiro de Biden, o
fracasso dos ataques contra a democracia americana demonstram o valor de
instituições fortes. Se os EUA são capazes de superar esse ataques, também
poderão ser capazes de ajudar seus vizinhos a fazer o mesmo. / Tradução Augusto Calil
Biden quer marcar logo sua diferença com o passado – Opinião Valor Econômico
A
armadilha é que o sucesso dos enormes impulsos econômicos não poderá ocorrer
rápido demais
O
democrata Joe Biden assume hoje a Presidência dos Estados Unidos com os olhos
igualmente voltados para o passado e o futuro. Após quatro anos da
administração demente de Donald Trump, parte das tarefas imediatas de Biden
buscarão a restauração da normalidade - debelar a pandemia, diminuir o
desemprego, retomar o crescimento, engajar-se de novo na agenda climática
global e restabelecer as pontes com os tradicionais aliados dos EUA,
dinamitadas pelo presidente que sai. A agenda para o futuro, com investimentos
de US$ 3 a US$ 4 trilhões na infraestrutura e tecnologia verdes dependerá muito
do acerto de contas com o passado.
Os
EUA estão às voltas com o recrudescimento da covid-19, que já deixou 400 mil
vítimas e mata hoje mais de 1.700 americanos por dia. Trump foi ativamente
negligente no combate à pandemia, que desdenhou, e é um consenso de que não
haverá a volta ao crescimento econômico seguro sem que o vírus seja derrotado.
Biden
buscará diferenciar-se de imediato de seu antecessor com uma série de medidas
que anunciará na posse e nos 10 primeiros dias de governo. Embora não seja difícil
marcar distância do desvario trumpista, o presidente democrata alinhavou um
programa de estímulos amplo de US$ 1,9 trilhão, que ataca várias frentes. A
missão principal é o ataque frontal da pandemia, para a qual reservou US$ 400
bilhões. Ainda que seu pacote enfrente contestações à esquerda, na Câmara, e à
direita, no Senado, mesmo entre democratas, não há quem se oponha ao aumento de
recursos contra a covid-19 que devasta o país.
Melhorias
imediatas na mortandade da covid-19 e em sua propagação abrirão caminho para o
resto do programa de governo - serão um preâmbulo indispensável. De imediato
virão o anúncio da volta dos EUA ao Acordo de Paris e de uma política amistosa
em relação aos migrantes, especialmente vilipendiados desde os primeiros dias do
governo Trump. Dentro da competência do Executivo, serão revogadas todas as
decisões em relação à desregulamentação ambiental destrutiva feita por seu
antecessor.
O
pacote econômico de Biden contempla a ampliação e extensão do auxílio
desemprego, envio de cheques de US$ 1400 dólares para americanos com renda de
até US$ 75 mil anuais, doações e empréstimos a pequenas e médias empresas,
recursos para Estados e municípios, reabertura de escolas etc. Ele ampliará o
déficit público de 15,3% do PIB em 2020 e complementará gastos jamais vistos na
história em decorrência da pandemia - US$ 3 trilhões no início da crise da
covid-19, US$ 900 bilhões no fim do ano, US$ 1,9 trilhões agora, acompanhados
do aumento do balanço do Fed de US$ 4 trilhões para US$ 7 trilhões.
Financiar
a montanha de US$ 22 trilhões em dívidas, calculam os democratas, não será
problema grave diante das taxas de juros negativas em vigor. Biden nomeou para o
Tesouro Janet Yellen, ex-presidente do Fed, favorável a mais estímulos
monetários e fiscais. Ela e o presidente do Fed, Jerome Powell falam a mesma
língua e na gestão de Biden quatro das sete cadeiras do comitê do Fed que
decide o futuro dos juros terão rodízio, assumindo moderados com a mesma
orientação.
Além
dos enormes desafios domésticos, mais suaves até no plano econômico que no
político - os republicanos manterão oposição ferrenha - Biden terá de recompor
as alianças internacionais destruídas por Trump e encontrar um novo eixo
diplomático para entender-se com a China, alçada à categoria de inimigo número
um por Trump.
Boa
parte do vácuo deixado por Trump na esfera internacional foi preenchido pela
China. Trump desmontou a Parceria Transpacífico de Obama-Biden; a China
remontou-a a seu favor e no fim de 2020 arrematou um acordo de investimentos
com a União Europeia, enquanto os EUA afundavam no retrocesso de um
nacionalismo nada inteligente. Os instrumentos da guerra comercial não serão
imediatamente desmontados por Biden - nem se sabe quais serão os termos do
relacionamento com Pequim, vital para a conformação das relações de poder
globais.
Se
tudo der certo na largada, e a pandemia for domesticada, o crescimento global
ganhará impulso. A armadilha é que o sucesso dos enormes impulsos econômicos
não poderá ocorrer rápido demais. Diante do recorde histórico de endividamento
de empresas e governos, a simples ameaça de uma normalização monetária precoce,
com aumento dos juros, tem o poder de desencadear nova crise global.
Pazuello e as Forças – Opinião | Folha de S. Paulo
Incômodo
com ministro reforça importância de limites para militar em posto civil
Desgastadas
após 21 anos de gestão ditatorial com término em ruína, as Forças Armadas brasileiras
se recolheram aos quartéis em 1985. Não foi processo simples, nem sem
intercorrências, mas pode-se dizer que bem-sucedido ao fim.
Novas
gerações de oficiais se formaram sob a égide da Constituição de 1988 e de sua
missão de defendê-la, não contra inimigos imaginários convenientes a ardis
políticos num país com não poucas quarteladas em seu passado.
Podem-se
detectar sinais de abalo nesse cenário nas jornadas de 2013, quando veio à
tona, em proporções imprevisíveis, a insatisfação popular com o establishment.
A
onda antipolítica ganharia força com os escândalos revelados pela Lava Jato e o
desgaste terminal do governo Dilma Rousseff (PT), e em 2018 venceria as
eleições, com a bênção tácita da cúpula do serviço ativo, um capitão reformado
famoso por sua indisciplina.
Já
se notava maior presença e influência de militares no breve governo de Michel
Temer (MDB). Já sob Jair Bolsonaro, a ocupação se conta em milhares de cargos
civis comissionados e 9, entre 23, ministros oriundos desse meio. Tal demasia
hoje representa embaraço para as próprias Forças Armadas.
O
fiasco na pandemia agravou esse quadro. O
incômodo mais óbvio se dá com um general da ativa, Eduardo Pazuello,
colocado na pasta da Saúde por servilismo à ignorância truculenta do mandatário
—à qual acrescenta sua completa incompetência para a função.
Questionado
quanto a sua omissão na tragédia da falta de oxigênio em Manaus, flagrado em
declaração falsa sobre a posse de vacinas, sócio da incúria bolsonarista no
combate ao coronavírus, Pazuello, conforme se noticia, gera preocupação entre
militares de alta patente com a imagem do Exército.
Como
se não bastasse, Bolsonaro voltou a encenar
o papel de vivandeira-mor da
nação, ao afirmar que “quem decide se um povo vai viver na democracia ou na
ditadura são as Forças Armadas”. Trata-se de distorção recorrente e grosseira
do artigo 142 da Constituição, que simplesmente menciona a missão de garantir a
lei e a ordem.
São
exemplos de sobra a demonstrar a conveniência de estabelecer limites à
participação de fardados em postos civis da administração pública. Como
já defendeu esta Folha, deve haver veto
quase integral em se tratando de militares da ativa, admitindo-se reservistas
com notória qualificação para o cargo.
Seria
um desejável aperfeiçoamento institucional, compatível com as melhores práticas
democráticas. As Forças Armadas são entes de Estado, cujas atribuições
constitucionais —as verdadeiras— não se confundem com os interesses do governo
de turno.
Estradas no limbo – Opinião | Folha de S. Paulo
Mesmo
com pandemia, queda na fiscalização com radar lança dúvida sobre segurança
Num
país que ainda ostenta um dos trânsitos mais mortíferos do planeta, é sem
dúvida motivo de preocupação a queda expressiva na fiscalização de velocidade
registrada em 2020. Dados obtidos pela Folha mostram que a vigilância com radares
móveis nas estradas federais caiu
cerca de 75% ante as médias de 2019 e 2018.
A
pandemia de Covid-19, ao diminuir viagens e deslocamentos ao longo do ano,
decerto contribuiu para tal redução. Existe outro fator, contudo, que não pode
ser desconsiderado nessa equação: o presidente Jair Bolsonaro.
Eleito
com a promessa demagógica de combater uma fantasiosa “indústria da multa”, nunca
demonstrada com evidências concretas, o presidente travou, em seu primeiro ano
de governo, verdadeira batalha contra o controle de velocidade nas estradas
federais.
Primeiro,
Bolsonaro investiu contra os radares fixos, afirmando que não renovaria os contratos
existentes nas rodovias. Com a medida barrada pela Justiça, o mandatário
escolheu como vítimas os aparelhos móveis. Em agosto de 2019, decretou a
suspensão do monitoramento com esses dispositivos.
O
resultado se fez sentir. Anotou-se naquele ano uma queda de 24% na fiscalização
de velocidade, na comparação com 2018.
Em
dezembro de 2019, o Judiciário interveio de novo e determinou a retomada total
do monitoramento. Os números, porém, deixam dúvidas se a ordem vem sendo
cumprida a contento pela Polícia Rodoviária Federal (PRF).
As
justificativas para o menor controle dificilmente se sustentam. A PRF alega que
houve diminuição do tráfego em razão da pandemia, mas, segundo o Ministério
Público, nos meses de janeiro e fevereiro, antes das medidas restritivas de
circulação, “verificou-se acentuada queda no número de fiscalizações e
autuações”.
Embora
seja temerário estabelecer relações de causa e efeito no trânsito, o fato é
que, em 2019, o número de mortes e feridos graves nas estradas federais voltou
a crescer após sete anos de queda, tendência que se manteve nos dois primeiros
meses de 2020.
Há
na literatura, ademais, farta evidência de que velocidades menores e
observância da legislação resultam em menos vítimas.
Após
recurso da Advocacia-Geral da União, o caso encontra-se no TRF da 1ª Região
(Brasília). Esse não deveria ser tema que precisasse da intervenção da Justiça.
Crimes de responsabilidade – Opinião | O Estado de S. Paulo
A
cada dia, mais pessoas admitem que a conduta de Jair Bolsonaro durante a
pandemia pode configurar crime de responsabilidade.
Já não é nenhuma novidade, tampouco causa nenhum escândalo. A cada dia, mais pessoas admitem abertamente que a conduta do presidente Jair Bolsonaro – tanto as ações como as omissões – durante a pandemia de covid-19 pode configurar crime de responsabilidade.
Ressalta-se
que essa afirmação sobre o comportamento de Jair Bolsonaro não tem surgido
apenas de setores da oposição, como se fosse mais uma tentativa de causar
desgaste ao adversário político. Quem tem dito que o presidente Jair Bolsonaro
cometeu crime de responsabilidade durante a pandemia são pessoas das mais
variadas tendências, de diferentes trajetórias profissionais, muitas delas sem
nenhuma vinculação partidária.
Ante
a ampla diversidade de vozes, essas afirmações sobre a conduta do presidente
Jair Bolsonaro não podem ser atribuídas, portanto, somente a eventual interesse
político. Na realidade, muitas dessas declarações têm antes o tom de um
reconhecimento a contragosto.
Além
disso, mais do que o resultado de um raciocínio sofisticado, a exigir difíceis
passos lógicos, a correlação entre o comportamento de Jair Bolsonaro durante a
pandemia e crime de responsabilidade ganha, a cada dia, uma dimensão de
evidência. Não é tarefa fácil argumentar que o presidente da República não
cometeu, desde março do ano passado, algum crime previsto na Lei 1.079/1950.
Ao
tratar dos atos do chefe do Poder Executivo federal, a lei diz que “são crimes
de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a
Constituição Federal e, especialmente, contra: (i) a existência da União; (ii)
o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário e dos poderes
constitucionais dos Estados; (iii) o exercício dos direitos políticos,
individuais e sociais; (iv) a segurança interna do País; (v) a probidade na
administração; (vi) a lei orçamentária; (vii) a guarda e o legal emprego dos
dinheiros públicos; (viii) o cumprimento das decisões judiciais” (art. 4.º).
Em
especial, há um artigo na Lei 1.079/1950 que exige do presidente da República
respeito à vida. “São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos
direitos políticos, individuais e sociais: (...) violar patentemente qualquer
direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos
sociais assegurados no artigo 157 da Constituição” (art. 7.º, 9).
O
art. 141 da Constituição de 1946, a que faz referência a Lei 1.079/1950, dispõe
sobre a “inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à
segurança individual e à propriedade”.
Trata-se
de uma situação peculiar. A rigor, crime de responsabilidade é algo gravíssimo,
que pode levar o presidente da República ao afastamento do cargo e à perda do
mandato. No entanto, nos tempos atuais, parece que a imputação de crime de
responsabilidade perdeu seu caráter controvertido.
O
quadro chegou a tal ponto que até o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia (DEM-RJ), afirmou, no dia 15 de janeiro, que o afastamento do presidente
Jair Bolsonaro do cargo, “de forma inevitável, será debatido (pelo Congresso) no futuro”. Até
então, Rodrigo Maia vinha, de forma recorrente, refutando qualquer
possibilidade de abertura de processo de impeachment contra o presidente da
República.
Não
é uma situação confortável para Jair Bolsonaro, até porque a lei brasileira
optou por um controle amplo dos crimes de responsabilidade. Segundo a Lei
1.079/1950, qualquer cidadão pode denunciar o presidente da República ou
ministro de Estado por crime de responsabilidade perante a Câmara dos
Deputados. Até o ano passado, havia mais de 50 pedidos de impeachment contra o
presidente da República na mesa do presidente da Câmara, a quem compete avaliar
o preenchimento dos requisitos legais desses atos.
Por
suas muitas e graves consequências sobre o País, o recebimento de uma denúncia
contra o presidente da República exige especial prudência e cautela. Mas isso
não pode significar omissão. As leis do País continuam vigentes. Assim, as
denúncias contra Jair Bolsonaro devem ser devidamente avaliadas.
Reação forte, mas incompleta – Opinião | O Estado de S. Paulo
Apesar
da reação, País ficou em novembro abaixo do nível pré-crise, segundo o BC.
O Brasil acumulou crescimento de 15,3% nos sete meses até novembro e deixou longe o fundo do poço, mas a produção continuou 1,9% abaixo do nível de fevereiro, anterior ao primeiro impacto da covid-19, segundo o Índice de Atividade Econômica do Banco Central (IBC-Br). As marcas da pandemia ainda são muito visíveis na economia nacional. Em novembro a indústria superou por 2,6% o patamar de antes da crise, mas o resultado de 11 meses foi 5,5% inferior ao do período equivalente do ano anterior. A agropecuária se manteve firme ao longo de 2020, enquanto o setor de serviços, com recuperação iniciada só em junho, permanece muito fraco. Todos esses dados estão refletidos no IBC-Br, impreciso como prévia do Produto Interno Bruto (PIB), mas valorizado como útil sinalizador de tendências.
Como
a produção industrial e o consumo, o indicador do BC tem avançado, nos últimos
meses, menos rapidamente que no início da recuperação. O crescimento mensal
passou de 1,76% em setembro para 0,75% em outubro e 0,59% em novembro, na série
livre das variações sazonais. Essa perda de impulso está associada à
insegurança e às dificuldades do consumidor, a partir da redução do auxílio
emergencial, em setembro. O consumo, principal motor da economia, tem oscilado
em ritmo inferior ao do começo da retomada, como indicam os dados do varejo. Há
quem antecipe, no mercado, um IBC-Br com variação negativa em dezembro.
Os
números são todos negativos nas comparações com prazos mais longos. O indicador
de novembro foi 0,83% menor que o de um ano antes. O resultado trimestral foi
1,61% menor que o dos meses correspondentes de 2019. O confronto de
janeiro-novembro de 2020 com os mesmos 11 meses do ano anterior mostra um recuo
de 4,63%. O desempenho acumulado em 12 meses ficou 4,15% abaixo do
contabilizado no período precedente. Esses últimos números negativos são
próximos da perda econômica estimada no mercado para 2020. Pela mediana das
estimativas, o PIB encolheu 4,37% no ano passado. Esse número apareceu na
pesquisa Focus divulgada
no dia 11 pelo BC.
O
ministro da Economia, Paulo Guedes, tem descrito a reação da economia como uma
recuperação em V. O crescimento acumulado de maio a novembro parece justificar
essa descrição, embora o resultado geral de 2020, pelos cálculos do mercado e
do próprio governo, seja uma queda superior a 4%. Além disso, o retorno ao
nível de 2019 só ocorrerá em 2022, segundo as projeções correntes. Segundo
o boletim Focus publicado nesta segunda-feira,
o PIB crescerá 3,45% neste ano, de acordo com a projeção do mercado. Confirmada
essa expectativa, continuará faltando um pedaço da fatia perdida no ano
passado.
Mas
o avanço econômico de 3,45% dependerá de condições pressupostas pelos
economistas do mercado. Essas condições incluem seriedade na gestão das contas
públicas ou, em outras palavras, clara manutenção do compromisso com a
responsabilidade fiscal.
Segundo
o boletim Focus, o déficit
primário do setor público (saldo calculado sem o custo dos juros) diminuirá dos
10,60% do PIB estimados para 2020 para 2,80% em 2021. A melhora resultará em
parte do aumento da arrecadação, mas o resultado dependerá principalmente do
firme controle dos gastos. O governo terá de se abster de qualquer gastança
destinada a favorecer a reeleição do presidente Jair Bolsonaro ou a beneficiar
seus aliados.
Além
disso, há insegurança quanto às fontes de crescimento. Sem auxílio emergencial,
de onde sairá o dinheiro para sustentar o consumo? Bastará antecipar – hipótese
mais nova – o 13.º salário dos aposentados e o abono salarial? As famílias
estarão dispostas a gastar a propalada poupança da quarentena? Faltam respostas
a essas questões. Se o governo afrouxar a política, sob pressão de aliados e de
ministros gastadores, a confiança sumirá, o dólar poderá disparar, de novo, e
os juros tenderão a subir, prejudicando o Tesouro e a reativação. A notícia
econômica mais promissora, por enquanto, é o começo da vacinação – também na
contramão da política presidencial.
Progressos e indefinições no saneamento – Opinião | O Estado de S. Paulo
Consumar
a regulamentação do Novo Marco é uma pauta urgente.
O Novo Marco Legal do Saneamento, sancionado em julho, começa a dar seus frutos. Como mostrou reportagem do Estado, três Estados já realizaram leilões bem-sucedidos e ao menos 14 unidades da Federação têm planos de atrair investimentos privados para o tratamento de água e esgoto e a gestão de resíduos sólidos. No entanto, ainda há trabalho a ser feito pelo Congresso, Planalto e Agência Nacional de Águas (ANA) para consumar a regulamentação do Marco e pôr o País definitivamente no rumo da universalização.
O
Novo Marco está fundamentado em três pilares. Primeiro, a clareza e a
padronização da regulação. Depois, o incentivo à prestação regionalizada. E,
finalmente, a livre concorrência no mercado.
No
ano passado, de acordo com a Associação Brasileira de Indústrias de Base, o
segmento recebeu R$ 14,4 bilhões em investimentos. A entidade estima que os
novos projetos devem adicionar mais R$ 1,3 bilhão em 2021; R$ 5,4 bilhões em
2022; e R$ 8,5 bilhões em 2023.
Um
mecanismo importante para essa aceleração é o robustecimento dos programas do
Banco Nacional de Desenvolvimento Social e da Caixa Econômica Federal de apoio
técnico aos Estados na estruturação de projetos e parcerias de saneamento. O
Fundo de Apoio à Estruturação e ao Desenvolvimento de Projetos da Caixa, que
atualmente dá assistência na modelagem de projetos de saneamento e resíduos
sólidos para 24 cidades, prevê para o próximo biênio uma seleção de 23
consórcios para concessões de resíduos sólidos a serem apoiados, beneficiando
cerca de 380 municípios e 9,8 milhões de habitantes, além de uma nova seleção
de propostas de serviços de água e esgoto, que poderão beneficiar cerca de 80
municípios e 3 milhões de pessoas.
O
Ministério do Desenvolvimento Regional promete ainda complementar esses
programas com três fundos regionais para fomentar “fábricas de projetos”. Além
disso, no fim de dezembro, o governo federal publicou um decreto liberando R$ 5
bilhões até 31 de março de 2022 para que cidades que ainda não estejam
organizadas em blocos regionalizados façam a transição para as novas regras do
Marco.
Mas,
apesar do avanço notável em comparação com a estagnação das últimas décadas,
ainda falta muito para chegar aos R$ 50 bilhões anuais estimados para atingir a
meta legal da universalização em 2033.
Do
ponto de vista da regulação, ainda está em atraso o decreto que conferirá a
metodologia para o cálculo que determinará se as atuais operadoras têm ou não
capacidade econômico-financeira para atingir a universalização nos prazos da
lei, condição fundamental para definir quais contratos poderão ser continuados
e quais deverão ser adaptados ou descontinuados. De resto, a ANA ainda está
elaborando o regramento infralegal que estabelecerá as normas de referência
para o setor, processo que deve tomar mais dois anos.
Ainda
mais importante para conferir segurança jurídica ao mercado e destravar
definitivamente os investimentos é que o Congresso aprove o veto do presidente
da República à possibilidade de que os atuais contratos com as companhias
estatais de água e esgoto sejam renovados por mais 30 anos sem necessidade de
licitação. Cinco meses após a sanção da lei, o Congresso ainda não deu sinal de
quando apreciará esse e outros vetos.
Nessas
condições de indefinição, muitos Estados e municípios não podem organizar suas
licitações, sob o risco de serem barradas por ações judiciais. Dados da
Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto indicam que
888 municípios estão no limbo, ou seja, não podem nem continuar os contratos
atuais nem organizar licitações.
Consumar a regulamentação do Novo Marco é uma pauta urgente. Além do imperativo humanitário para com dezenas de milhões de brasileiros sem acesso a saneamento básico, os especialistas do setor estimam que cada R$ 1 investido em saneamento gere um retorno de R$ 2,8 para a economia, ou seja, os R$ 700 bilhões previstos para que se atinja a universalização produziriam um impacto de quase R$ 2 trilhões.
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