Retomada
desigual do PIB e fim do auxílio fomentam crise social
Não
é desprezível o risco de o país enfrentar nos próximos meses uma grave crise
social. Todos sabemos que 2020 só não foi mais trágico, do ponto de vista
econômico, porque o Congresso Nacional e o governo federal agiram rapidamente
para instituir novo mecanismo de transferência de renda e, assim, compensar o
fato de que, devido à pandemia, milhões de trabalhadores formais e informais
perderam subitamente seu ganha-pão
O
auxílio emergencial funcionou razoavelmente bem e impediu que a contração da
economia fosse muito superior à esperada. Muitos analistas chegaram a projetar
queda acima de 9% para o Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. Segundo cálculos
do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da FGV-Rio, o PIB
pode ter caído 4,7% no ano passado e crescerá 3,6% em 2021.
O que evitou um mergulho maior do PIB foram os bilhões de reais transferidos a pouco menos de 70 milhões de brasileiros entre abril e dezembro. Uma parte significativa desse contingente - cerca de 45 milhões de pessoas - é beneficiária do programa Bolsa Família e, por essa razão, continua recebendo o benefício, embora num valor bem inferior ao do auxílio emergencial - aproximadamente, R$ 150 por pessoa, em vez de R$ 600 (quantia paga entre abril a setembro) e R$ 300 (de outubro a dezembro).
O
auxílio expirou em 31 de dezembro. Neste mês, ainda há um resíduo a ser
transferido, mas, depois disso, acaba. Enquanto isso, assistimos, apreensivos,
ao recrudescimento da pandemia no país. Seus efeitos negativos sobre a economia
logo aparecerão, comprometendo a recuperação esperada. Grosso modo, 30 milhões
de cidadãos viverão doravante sem renda alguma.
A
equipe econômica do governo alega que a situação fiscal do país já era
claudicante antes da pandemia e tornou-se desesperadora ao longo de 2020. O
setor público consolidado, isto é, as contas de União, dos Estados e
municípios, registrou déficit primário, nos 12 meses acumulados até novembro,
de R$ 664,6 bilhões (8,93% do PIB).
Chama-se
esse conceito de “primário” porque não inclui a despesa com juros da dívida. É
a diferença entre o que o Estado arrecada por meio de tributos e o que gasta.
Desde 2014, essa diferença é negativa. No ano passado, por causa da pandemia, é
compreensível que, por causa do enfrentamento da pandemia, o rombo tenha
aumentado.
Bem,
se o setor público da Ilha de Vera Cruz não consegue arrecadar o suficiente
para cobrir as despesas do Estado, como faz para honrar despesas como
aposentadoria e pensões de mais de 30 milhões de brasileiros, salários do
funcionalismo e gastos obrigatórios com saúde e educação? Ora, endividando-se.
Nos
12 meses até novembro de 2021, o déficit nominal, conceito que inclui o serviço
da dívida, isto é, a despesa com juros, alcançou R$ 978,0 bilhões (13,14% do
PIB). A Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), que compreende governo federal,
INSS e governos estaduais e municipais, alcançou R$ 6,559 trilhões em novembro
(88,1% do PIB). Em apenas um ano, cresceu mais de dez pontos percentuais de
PIB.
Ninguém
em sã consciência dirá que a situação fiscal deste país não é grave. O problema
é justificar o fim da ajuda humanitária a quem precisa com o argumento de que,
se houver deterioração adicional das finanças públicas, o país quebrará,
investidores (nacionais e estrangeiros) fugirão daqui, a cotação do dólar
visitará a estratosfera, haverá calote da dívida...
Não
se tente convencer um pai de família desempregado a entender esse argumento ou
de que sua situação é esta por não ter estudado) ele pode mostrar que,
felizardo (porque a maioria não chega tão longe), estudou, sim, em escola
pública durante toda a sua vida, ganhou bolsa do Fies para cursar ensino
“superior” em faculdades com ação na bolsa e sócio estrangeiro, mas de péssima
qualidade, e ainda assim está na miséria, como outros milhões de compatriotas
neste momento terrível do país e da humanidade.
Por
que não se usa o mesmo argumento fiscal para “convencer” grupos de interesse
específico a entregar parte do butim, que faz deste imenso território um lugar
rico habitado por uma minoria rica e uma maioria esmagadora, pobre?
“O
Brasil chega a 2021 mais enredado do que nunca nas complexidades e contradições
de múltiplas expectativas e demandas. É preciso voltar a crescer, mas também há
que se responder a uma teia cada vez mais ampla de direitos democráticos em
temas como saúde, segurança, transporte de qualidade, meio ambiente, combate ao
racismo, empoderamento feminino, reconhecimento de identidades de gênero etc.”,
observa Luiz Guilherme Schymura, presidente do Ibre-FGV.
Há
uma visão, diz Schymura, segundo a qual, a retomada do crescimento seria
suficiente para que os rendimentos do mercado de trabalho preenchessem a lacuna
deixada pelo fim do auxílio emergencial. O impacto social, portanto, não seria
dramático. O problema é que, talvez, muitos dos que acreditam nessa
possibilidade não tenham considerado dois fatores: o aumento exponencial dos
casos de covid-19, algo que pode obrigar prefeitos e governadores a reinstituir
regras de isolamento social, e o fato, inacreditável, de que o governo
Bolsonaro simplesmente não planejou a vacinação dos 210 milhões de viventes que
moram neste canto do planeta. Sem vacina e imunização planejada, não teremos
recuperação econômica. Teremos, sim, o agravamento da crise sanitária que já
ceifou a vida de 210 mil brasileiros.
Há
um terceiro problema. A economista-chede do Ibre, Sílvia Matos, conta que a
retomada pós choque econômico da pandemia é muito desigual. “Chegou-se a criar
a expressão ‘recuperação em k’ para se referir ao fato de que, enquanto a
indústria e o comércio saíram na frente, os serviços, mais afetados pelo
distanciamento social, ainda dão sinais de fraqueza”, diz Schymura.
Exemplo
da heterogeneidade no próprio setor de serviços. Os que são prestados às
famílias e que empregam bastante, medidos pela Pesquisa Mensal de Serviços
(PMS), estavam em outubro 32% abaixo do nível pré-pandemia, em fevereiro do ano
passado. Já os serviços de tecnologia da informação registraram avanço de 12%
na mesma comparação, beneficiados pelo trabalho em casa, a comunicação a
distância.
“É nessa encruzilhada extremamente difícil que se encontra o país neste início de 2021, e não se deve nutrir a esperança de que a retomada econômica pós covid resolverá os muitos dilemas e impasses. Mais do que nunca, será preciso um grande entendimento nacional para que se encontre um caminho viável que evite simultaneamente crises agudas no campo fiscal e social”, comenta Schymura.
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