quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Pedro Cafardo - Efeito Bourbon tem um lado bom

- Valor Econômico, 19/1/21

Trump será exemplo a líderes que resolvam rasgar a Constituição

Efeito Orloff, para quem não se lembra, foi a expressão criada nos anos 1990, inspirada num comercial de vodka com o mote “eu sou você amanhã”, para indicar o impacto da crise argentina sobre o Brasil. Os últimos anos do século XX foram terríveis para países emergentes. As crises em sequência, batizadas pela mídia ou por acadêmicos de maneira bem humorada, tinham nomes que se referiam a bebidas preferidas ou a ritmos musicais característicos desses países. Assim, além do Orloff, houve o Efeito Tequila, usado quando o México entrou em moratória, o “Efeito Tango”, da própria Argentina, e até o “Efeito Samba”, da crise brasileira.

Neste início deste ano, uma nova expressão metafórica, Efeito Bourbon, foi cunhada para retratar o impacto decorrente do que se passou nos Estados Unidos em 6 de janeiro, quando o presidente Donald Trump instigou seus apoiadores a invadir o Congresso em Washington para tentar virar o resultado da eleição. Impossível saber quem criou a expressão, talvez o jornalista José Roberto de Toledo, que a citou no Foro de Teresina, da revista “Piauí”.

A pergunta é: há um risco real de o Efeito Bourbon contaminar o Brasil, embora Trump vá deixar amanhã, para o júbilo global, o cargo mais importante do mundo?

E a resposta é sim, para o bem e para o mal. O presidente Jair Bolsonaro é um fiel seguidor e bajulador de Trump, a quem já fez uma ridícula declaração de amor. Talvez tenha dito aquele “I love you”, em 2019, por ser essa a única frase que sabe de cor em inglês. Poderia ter dito “The book is on the table”, porque Trump ignorou a declaração e disse apenas “Bom te ver novamente”. Mas Bolsonaro não esconde seu amor pelo agora quase ex-presidente americano. No dia em que houve a invasão do Congresso, ele falou em fraudes nas eleições americanas. E dias depois, disse que poderá ocorrer a mesma coisa no Brasil em 2022 se continuar havendo voto em urna eletrônica.

Esse seria um Efeito Bourbon do mal para o Brasil, mas poderá haver outro, do bem. O impeachment de Trump foi votado na Câmara em tempo recorde na semana passada e agora depende do Senado. Mesmo que não passe, Trump já vai entrar para a história como o único presidente dos EUA que teve dois impedimentos aprovados pela Câmara.

Esse Efeito Bourbon, o impeachment relâmpago, deve preocupar Bolsonaro. É possível que muitos parlamentares já estejam pensando se isso não pode ser feito também no Brasil. São preocupantes, para dizer o mínimo, as ameaças que Bolsonaro faz sobre contestação dos resultados eleitorais. Ele dá a entender que, caso perca a eleição em 2022, vai usar todas as armas para desacreditar a votação e tentar continuar no poder. Lá nos EUA, policiais facilitaram a entrada dos invasores no prédio do Capitólio e alguns fizeram até selfies com os amotinados. Aqui... - é melhor nem falar sobre isso.

Essa conversa leva ao fator Rodrigo Maia. Existem cerca de 60 pedidos de impeachment de Bolsonaro na Câmara esperando uma definição de seu ainda presidente Rodrigo Maia (DEM-RJ). Talentoso político, que chamou Bolsonaro de covarde, ele não demonstrou coragem política para abrir um processo de impedimento do presidente. Suas explicações para a omissão, mesmo com indícios de crime de responsabilidade cometidos por Bolsonaro, sempre foram no sentido de que não há ambiente político para isso. Mesmo antes da pandemia, essa já era a justificativa, porque haveria uma conturbação política prejudicial ao país. Talvez ele não tenha imaginado o quão prejudicial é a permanência da situação atual de total desrespeito à vida durante a crise sanitária. Outra explicação para a não abertura do processo seria a falta de apoio político no Congresso. Um eventual pedido estaria fadado ao fracasso, uma desculpa esfarrapada. Cada parlamentar deve assumir sua responsabilidade publicamente. Deixar de discutir o assunto é poupar da exposição pública aqueles que aprovam a continuidade da condução irresponsável do combate à pandemia. O processo de impeachment também abriria a possibilidade de a sociedade se manifestar sobre o assunto.

Proibido pelo STF de disputar a reeleição para a presidência da Câmara, Maia trabalha arduamente pela eleição de Baleia Rossi (MDB-SP), representante do Centrão. Não é uma operação irrelevante. Se for bem-sucedida, pode virar um ensaio para 2022. Em nenhum momento, até agora, Maia admitiu ser candidato à Presidência da República. Ele é o vice dos sonhos de vários pré-candidatos, mas sua desenvoltura política indica que não pretende ser sub de ninguém, muito menos de neófitos da política.

Sendo bem-sucedido na operação Baleia, ele se torna um nome forte para 2022. Afinal, o que pedem há muito tempo os analistas políticos brasileiros? O fim da excessiva polarização nas eleições presidenciais. A ideia é que haja um candidato de centro com cintura política - os não políticos decepcionaram - aberto tanto à esquerda quanto à direita, que possa fazer uma gestão de diálogo. E Rodrigo Maia parece ter essa qualidade até de sobra. Na operação Baleia, conquistou apoio até do PT e de outros partidos de esquerda.

E o que isso tem a ver com o Efeito Bourbon? Tem muito, porque Rodrigo Maia é um político de extrema competência que está olhando para frente. Não vai agora tomar uma decisão que possa ser interpretada como oportunismo. Se abrisse o impeachment contra Bolsonaro, qualquer que fosse o resultado do processo, teria mínimas chances de se qualificar para 2022. Com Baleia no comando da Câmara o jogo é outro. Ele pode se valer do Efeito Bourbon para mostrar serviço caso o ambiente político indique que Bolsonaro representa ameaça à democracia, tanto quanto foi Trump ao longo do mandato e, principalmente, nos seus últimos dias, ao ser expulso da Casa Branca pelo voto.

O lado positivo do ensaio de golpe nos EUA, portanto, precisa ser considerado. A ameaça de Trump à democracia foi facilmente debelada. Lá como cá, ao contrário do que pensa Bolsonaro, não são as Forças Armadas que decidem se o país vai viver em democracia ou ditadura. Isso é uma decisão do povo, por meio da Constituição. E o exemplo dos EUA representa um alerta para líderes que tenham a intenção de imitar Trump. Para que saibam qual o destino dos que tentam rasgar a Constituição: o lixo da história.

Nenhum comentário: