Vivemos
num tempo em que a arte nos enfada e os ministros do STF nos sobressaltam
Em
dois dias, mudou tudo. Na segunda-feira, em despacho monocrático, o ministro
Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), devolveu os direitos políticos
a Luiz Inácio Lula da Silva. Ao anular as sentenças da Lava Jato contra o
ex-presidente, sob o argumento de que o juiz da 13.ª Vara Federal de Curitiba,
Sergio Moro, não era aquele a quem cabia a competência para decidir sobre as
acusações que pesavam contra o réu, Fachin limpou a ficha de Lula, que agora
está livre para se candidatar em 2022.
No
dia seguinte veio mais. A Segunda Turma do mesmo STF começou a julgar a
parcialidade e a suspeição do juiz Sergio Moro nas sentenças contra Lula. O
julgamento levado a efeito pela Segunda Turma ainda não foi concluído, pois o
ministro Nunes Marques pediu vista, dizendo que precisava estudar melhor o
processo antes de votar, mas o que os ministros disseram na tarde de anteontem
abalou o que se tinha por certo e sabido. Quando se referiu à Operação Lava
Jato como “o maior escândalo judicial da nossa história”, o ministro Gilmar
Mendes deixou claro: tudo mudou.
Nada contra o veredicto de segunda. Nada contra a sessão de terça. As razões processuais alegadas pela defesa do ex-presidente Lula vão se demonstrando irrefutáveis. A incompetência do juízo de Curitiba só demorou uns anos para ser admitida no STF, mas é cristalina. Ninguém mais parece disposto a refutá-la, a não ser que tudo mude de novo. Quanto aos sinais de parcialidade do magistrado responsável pela Operação Lava Jato, que foram enumerados na terça pelos ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, não há peneira hermenêutica que dê conta de encobri-los. Houve abusos, alguns provados, outros até tacitamente admitidos.
Ao
menos no caso de Lula, o juiz da Lava Jato perpetrou injustiças em série, ainda
que tenham sido injustiças estritamente processuais, formais, como vem
postulando a defesa. Por isso já se sabia que, em algum prazo, de alguma forma,
essas injustiças acabariam sendo reconhecidas pelo Supremo, como começou a ser
feito nestes dois dias. Só não se sabia que as coisas viriam assim, tão
espetaculosas, alvoroçadas e atordoantes.
Portanto,
o problema não é o que se decidiu. Ao contrário, a nova postura do STF sobre a
matéria talvez seja até parte da solução. O problema é o risco imenso de se
aprofundar uma impressão generalizada de que a mais alta instância da Justiça
no Brasil se pauta pela inconsistência e pela imprevisibilidade errática. O
risco não deveria ser desprezado. Justiça não combina com ciclotimia.
A
instituição incumbida de julgar todos nós não deveria sentir-se à vontade para
mudar assim ao sabor das brisas, dos ventos e mesmo dos furacões. Alguma linha
de coerência há de perdurar entre as decisões, sob pena de a sociedade parar de
acreditar de vez na magistratura. Deus, que é Deus, pode escrever por linhas
tortas. Os juízes, não, por mais que alguns insistam.
E
agora? A sociedade brasileira assimilará bem a incongruência entre os acórdãos
impenetráveis da mais alta Corte do País? Qual o limite para tantas idas e
vindas? Se as arbitrariedades contra Lula eram patentes e gritantes, como eram,
por que se permitiu que elas fossem tão longe? Por que se permitiu que elas o
tirassem da eleição de 2018 e o enjaulassem. E por que reconsiderá-las agora,
justo agora e só agora?
Se
Moro praticou atos inadequados, que incidiram sobre o andamento de momentos
históricos de enorme repercussão, por que ele seguiu imune e adulado por tanto
tempo? E por que questioná-lo agora, assim? A impressão que se tem é que no
Brasil de hoje tudo está sub
judice: a prisão de Lula, que agora transparece como uma violência
indizível, está sub
judice e, junto com ela, a posse de Michel Temer na
Presidência da República, a abolição da escravatura, a Guerra do Paraguai e o
descobrimento do Brasil. É como se na segunda que vem o STF declarasse nulas as
violações ao Tratado de Tordesilhas e, em seguida, anulasse também o próprio
tratado, porque uma das firmas não foi devidamente reconhecida. Vai saber... O
STF parece acreditar que faz o tempo retroceder.
Normalmente
os críticos do Judiciário, focados nas tecnicalidades da aplicação da lei,
esmiúçam a observância ou a inobservância dos ritos e o rigor ou a frouxidão
das derivações jurisprudenciais de cada fundamentação. A esta altura nós
deveríamos preocupar-nos igualmente com a percepção que os brasileiros terão da
Justiça nos próximos anos.
O
leigo pode não saber o que é heurística, pode não entender o significado de
expressões como ex
ofício ou ex ante e ex post, mas sabe perfeitamente o
que é certo e o que é errado. Todo ser humano tem senso moral, percebe
intuitivamente a iniquidade, separa o justo do injusto. Se, por algum motivo,
os seres humanos deste país não virem mais no Poder Judiciário a encarnação
legítima da justiça, tudo o que está mudando vai abaixo.
Eis
o “ó do borogodó”, para invocarmos o novo brocardo jurídico. Vivemos num tempo
em que a arte nos enfada e os ministros do Supremo Tribunal nos sobressaltam.
Enquanto tudo muda, e alguma coisa está fora de prumo.
*Jornalista,
é professor da ECA-USP
Nenhum comentário:
Postar um comentário