Tudo é permitido a quem tem poder, a quem tem os advogados certos, os votos necessários, os desembargadores e os juízes da causa
11/03/2021
- 04:30
Não
sei vocês, mas eu tinha mais de 30 anos quando consegui comprar o meu primeiro
apartamento, e ainda me lembro da sensação de pânico de escrever um cheque tão
grande sem errar, e de me comprometer com uma dívida tão séria. Passar a
escritura foi um momento marcante na minha vida. Levei uma caneta tinteiro
muito bonita para assinar a papelada, e saí do cartório me sentindo adulta e
importante.
Quem
já comprou um imóvel com certo sacrifício se lembra desses detalhes, da
escritura sendo lida pelo escrivão, do frio na barriga, da felicidade da casa
própria.
Não
sei por quê estou falando nisso.
Mentira:
sei sim.
Como
qualquer brasileira que acompanha o noticiário, estou desde a semana passada
com uma mansão de R$ 6 milhões atravessada na garganta. Mas quando digo que não
sei por que estou falando nisso, o que quero dizer é que não adianta falar
disso. No Brasil é normal que os filhos dos presidentes sejam extremamente
talentosos, no Brasil é normal enriquecer no serviço público e, no Brasil, é
mais normal ainda o eleitor passar pano para a sua família política de
estimação.
Rouba mas faz; isso é coisa do filho; desde 1500 se rouba e só agora estão reclamando; rouba mas não é o PT; rouba mas é o PT; os tucanos o Centrão os neoliberais a sua mãe.
Eu
não quero mais falar disso.
Eu
não quero mais ter a minha pauta sequestrada pelos mesmos assuntos, ano após
ano, entra governo sai governo. A gente grita grita grita escreve escreve
escreve e nada acontece nunca, nada se resolve, nada muda.
Mentira:
muda sim.
Muda
para pior.
Tudo
é permitido a quem tem poder, a quem tem os advogados certos, os votos
necessários, os desembargadores e os juízes da causa. Dinheiro é secundário,
porque, para quem tem poder, dinheiro não é nada, apenas mais um item na conta
dos amigos. Vale para todos os lados, porque há bons amigos em todo o arco da
sociedade.
Os
mais velhos devem se lembrar dessa expressão, “arco da sociedade”. Era muito
comum no século passado, mais ou menos como “estado democrático de direito” é
hoje. Não se ouvia um Discurso Sério, feito por Pessoa Ilibada, que não tivesse
um “arco da sociedade” embutido.
Eu
não quero mais falar dessas coisas, mas há sempre um escândalo mais recente
para encobrir o último escândalo, e aos poucos os escândalos passados vão
caindo no esquecimento. Alguém tinha que fazer um placar gigantesco em praça
pública listando os escândalos todos, um por um, rolando em neon, para que
ninguém se esquecesse nunca.
E
aí nós cronistas de variedades poderíamos voltar a escrever sobre livros, gatos
e capivaras (sim, há uma família nova na Lagoa).
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Ainda é cedo para prever o que vai acontecer em 2022, sobretudo num país sem vacinas e sem vergonha como o nosso, mas que desgraça não conseguir virar a página e ficar rodando em falso desse jeito, remoendo um passado ancorado em si mesmo, sem visão para o futuro.
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