Sociedade
tem o direito de esperar que processo legislativo seja seguido com absoluto
rigor
O
escritor português José Saramago é conhecido por tiradas geniais que nos fazem
refletir diante de encruzilhadas. Lembrei-me de uma delas em plena votação da
chamada PEC Emergencial: “Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo”. O
Senado aprovou celeremente uma emenda constitucional que autoriza o pagamento
do auxílio emergencial, mas, ao mesmo tempo, cobre a Constituição com uma
cortina de fumaça que compromete a credibilidade do nosso arcabouço fiscal.
Nosso
país enfrenta a pior fase da pandemia, com nosso sistema público de saúde
próximo do colapso. Diante disso, infelizmente, o governo vem sendo negligente:
critica o uso de máscaras, condena o distanciamento e dificulta a vacinação.
Na
discussão da PEC Emergencial o governo adotou uma estratégia que consiste em
acuar o Congresso, com o objetivo de aprovar a agenda de austeridade
improvisada pelo Ministério da Economia. Usou seu poder para introduzir na PEC
um dispositivo que torna viável o pagamento de um benefício emergencial ao
mesmo tempo que, em troca, embute uma obscura reforma estrutural nas demais
partes da emenda.
Às
limitações do sistema semipresencial de votações junta-se uma celeridade que
torna a discussão precipitada e os resultados, confusos. Analisando a proposta
com a experiência que tive de relator dos capítulos de finanças públicas na
Constituinte, percebi a armadilha em que fui colocado: sem poder votar contra o
auxílio emergencial, nem concordar com que se manipule a Constituição.
Julgo que emendar a Constituição implica responsabilidade análoga à tarefa de elaborá-la. A maioria dos estudiosos classifica as alterações constitucionais como emanadas do poder constituinte. Assim sendo, sua execução exige o máximo de cautela, a fim de evitar casuísmos e imprudências com a norma jurídica mais importante da fundação do Estado.
O
próprio texto constitucional se protege de mudanças improvisadas e arriscadas:
estabelece que não se pode emendá-lo na vigência de situações emergenciais,
como o estado de defesa, o estado de sítio e a intervenção federal. Esse
dispositivo, aliás, remonta à Constituição de 1934, em resposta à Emenda
Constitucional n;° 3, promulgada em plena vigência do estado de sítio decretado
em 1926 pelo presidente Artur Bernardes.
A
pandemia permanece assolando nosso país e impedindo a volta da normalidade.
Neste contexto, várias comissões do Congresso Nacional nem sequer voltaram a
funcionar. Isso por si só já justifica postergar a votação de emendas
constitucionais, a não ser que haja absoluto consenso, como no caso do Fundeb.
Mas
o texto da PEC Emergencial exige considerações acerca das duas dimensões: uma
emergencial, outra estrutural. Considero a emergência a dimensão mais
importante para enfrentar o vírus e nela constato uma tática do tipo tudo ou
nada. A medida torna viável o pagamento de auxílio emergencial limitado a R$ 44
bilhões, o que pode ser considerado o plano oficial do governo para enfrentar o
vírus neste ano.
Assim
como não foi possível combater a emergência sanitária no ano passado com R$ 5
bilhões – de acordo com os planos do governo no início da crise –, é improvável
que a estimativa atual seja suficiente para enfrentar todos os efeitos da
pandemia em 2021. Para resolver esse impasse previsível a PEC apresenta outra
saída emergencial: suspender
todas as regras fiscais do País. Uma emenda comparável a um AI-5 sobre o
sistema fiscal previsto na Constituição.
Um
plano fiscal para enfrentar a crise é o mínimo que se espera de um governo
responsável. Não temos plano. Nem mesmo o Orçamento anual foi aprovado.
Ademais,
a proposta encaminhada à Câmara compromete a credibilidade do nosso arcabouço
fiscal. Criam-se regras fiscais com lacunas jurídicas e incentivos à
contabilidade criativa, levando ao crescimento do gasto público.
Sabe-se
que a crise fiscal tem um viés eminentemente federativo. Hoje, 68% das despesas
com funcionários e 84% das verbas destinadas ao consumo de bens e serviços têm
sua origem nos Estados e nos municípios. A PEC 186 estabelece que as medidas de
ajuste fiscal a serem adotadas por governadores e prefeitos limitem a despesa
corrente a um máximo de 95% da receita corrente.
Uma
análise, mesmo superficial, revela que esse porcentual pode estimular o aumento
da despesa: governadores e prefeitos que gastam menos de 95% poderão aumentar
as despesas até esse patamar, especialmente em épocas de eleição. O Executivo
poderá aumentar os gastos correntes dando aumentos salariais e subsídios, pois
a regra tem por alvo o gasto passado, mas não o futuro.
Numa
situação emergencial como a que vivemos hoje, não se deveria sequer pensar em
alterar regras estruturais do Estado brasileiro. O momento não é propício, o
contexto é temerário. A sociedade tem direito a esperar de nós, seus
representantes na Câmara e no Senado, que o processo legislativo seja seguido
com absoluto rigor.
Em poucas palavras: a pressa é inimiga da Constituição.
*Senador
(PSDB-SP)
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