O
Fla-Flu em que se transformou a política brasileira viveu nos últimos dias um
capítulo icônico, que começou com o movimento de Edson Fachin para salvar
Sergio Moro e o legado da Lava-Jato e culminou no discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em São
Bernardo do Campo. Enquanto moristas e bolsonaristas se revoltavam —
não necessariamente pelo mesmo motivo —, partidários de Lula comemoravam o que
diziam ser o restabelecimento da justiça e da verdade no Brasil.
Os
últimos lances no STF deixam claro, porém, que nada disso eliminou um dos
fatores que mais contribuíram para a crise em que vivemos e continua sem ser
encarado de frente: no Brasil, juízes agem como se pudessem tudo. E, ao
fazê-lo, ameaçam um pilar básico da democracia: o de que ninguém está acima da
lei.
A
esta altura do campeonato, só um alienígena consideraria não haver elementos
para discutir se Moro agiu ou não com parcialidade nos processos contra o
ex-presidente. Os diálogos divulgados pela Vaza-Jato mostram que ele de fato
“pulou o balcão”, como diz Gilmar Mendes, dando a procuradores instruções que
não lhe competiam e tomando decisões que abriram flanco a contestações.
Entre esses atos, estão a condução coercitiva de Lula; a divulgação dos diálogos entre Lula e Dilma captados por interceptação telefônica já depois do horário permitido por lei e a liberação para o público da delação de Antonio Palocci sobre o caixa 2 do PT, dias antes do primeiro turno de 2018. Sem contar Moro ter assumido a pasta da Justiça no governo de Jair Bolsonaro, dizendo que o fazia para preservar o legado da operação.
Em
que pese não ter sido tomada uma decisão final sobre o ex-juiz, o desenrolar
dos acontecimentos colocou Lula de volta no jogo eleitoral — o que, na
avaliação dos mais entusiasmados, seria sinal da volta ao “estado de direito” e
garantia de que não haverá mais interferências indevidas do Judiciário no
cenário político.
Alguns
fatos, porém, não deveriam escapar aos autointitulados garantistas. Em seu
arrazoado, o ministro Gilmar Mendes criticou duramente a divulgação dos áudios
interceptados em escritórios de advocacia, mas logo adiante utilizou-se de
diálogos também captados ilegalmente por um hacker para sustentar seu
argumento.
Afirmou,
ainda, que Moro agiu como “juiz acusador”, rompendo as barreiras legais para
sua atuação. Nem parecia o mesmo ministro que defende enfaticamente o inquérito
das fake news, aberto depois de uma reportagem com denúncias contra Dias
Toffoli.
Mesmo
sendo vítima do suposto crime, Toffoli determinou a abertura do inquérito e, em
vez de mandar sortear um relator, indicou Moraes para conduzi-lo e relatá-lo —
contra a posição da Procuradoria-Geral da República e sob críticas de juristas.
A investigação depois mudou de rumo e chegou a um esquema de disseminação de
fake news por bolsonaristas — o que, para alguns, desculparia o desvio
original. O próprio Gilmar já se referiu ao inquérito como uma “contribuição
para o mundo civilizado”.
Na
sessão desta semana, ao listar os abusos de Moro, Gilmar salientou que vários
pedidos de suspeição contra o ex-juiz foram arquivados sem análise. Mas não
mencionou que todas as arguições de impedimento e suspeição de magistrados do
próprio STF foram arquivadas.
Algumas,
inclusive, contra o próprio Gilmar, que, apesar de ter sido padrinho de
casamento do filho de um empresário de ônibus do Rio preso por corrupção, não
viu nada demais em conceder um habeas corpus para soltá-lo. “Ser padrinho de
casamento impede alguém de julgar um caso?”, disse, na ocasião.
A
seletividade nas decisões ocorre também no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em julho passado, o ministro João Otávio Noronha concedeu habeas corpus a Fabrício Queiroz
e sua esposa, Márcia Aguiar. Noronha, com quem Bolsonaro diz ter
tido “um amor à primeira vista”, havia negado vários pedidos de habeas corpus
de presos que diziam fazer parte do grupo de risco para a Covid-19. Mas acatou
o pedido de Queiroz com base nesse mesmo argumento.
Os
exemplos estão à vista de todos. Mesmo assim, há quem agora julgue que estamos
mais próximos do restabelecimento das garantias individuais e do devido
processo legal, porque Moro foi punido e Lula voltou a ser elegível.
Há
alguns meses, ouvi de um ativo combatente da Lava-Jato uma frase que resume o
espírito: “Estado direito é aquele que pune meu inimigo. Quando pune meu amigo,
é estado policialesco”.
Enquanto as decisões judiciais no Brasil forem encaradas dessa forma, sempre haverá juízes que, a pretexto de fazer o bem, extravasam limites de sua atuação. Pode até ser bom para os amigos, mas é muito ruim para a democracia.
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