Se
os arquivos da Lava-Jato permitem a Lula tentar reescrever sua história, os de
Bolsonaro, com condutas, falas, gestos e atos de seu governo dificultam sua
reinvenção
Radical
é a pandemia, inútil competir. A dor do povo é tão grande que não autoriza
mágoas. O estrago é tão gigantesco que a mudança de rumo não é um desejo, mas
um imperativo. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva usou a pandemia para
ancorar a moderação do presente e baixar a guarda sobre o futuro. É este o eixo
de Lula 2022. À indagação sobre as chances de sua candidatura, foi simples e
curto: “É mais fácil construir uma frente de esquerda contra o que está
acontecendo no país do que uma frente de direita”.
Já
mudou o país. No domingo, a pesquisa Ipec o trouxe com um potencial de voto
acima daquele do presidente da República. Na segunda, Jair Bolsonaro acordou
cordato para uma reunião com a direção da Pfizer. Na terça-feira, o ministro
Nunes Marques pediu vistas da suspeição de Moro para manter aberta a
possibilidade de as provas dos processos de Lula serem validadas pela primeira
instância do Distrito Federal. Na quarta-feira pela manhã, horas antes de o
ex-presidente começar a falar, apareceu de máscara na cerimônia que sancionou a
lei da aquisição de vacinas. Em seguida, o senador Flávio Bolsonaro tuitou uma
foto do pai com a frase: “A vacina é nossa arma.”
Não será fácil para Bolsonaro. Se é a revelação de um arquivo de mensagens entre os integrantes da operação da Lava-Jato que permite a Lula tentar reescrever sua história, com Bolsonaro se dá o inverso. É o arquivo de condutas, falas, gestos e atos de seu governo que torna pouco crível a fantasia de estadista responsável que o presidente da República passou a envergar. E nem precisa de “hackers” para isso. Está na memória recente dos milhões de brasileiros que perderam familiares e empregos.
Isso
não significa que Lula tenha uma avenida desimpedida. A reação dos pregões à
sua elegibilidade que o diga. No único momento mais exaltado da entrevista,
respondeu à repórter Cristiane Agostine, do Valor: “Não concordo com tudo
que eles fazem nem eles com tudo que eu fiz, mas não precisam ter medo.”
Desfiou a convivência de oito anos, sua posição contrária à autonomia do BC e
em defesa do investimento público até chegar à sua crítica mais aguda: “A
Febraban poderia me chamar para eu mostrar o demônio. Vou lá na Fiesp também. O
demônio é a safadeza daqueles empresários para quem Guido Mantega liberou R$
500 bilhões de desoneração que não foram repassados para os trabalhadores”. Ao
atingir não apenas os empresários mas o governo de sua antecessora já antecipou
a vacina que pretende usar contra a herança da ex-presidente Dilma Rousseff,
esquecida na nominata.
A
julgar pelo discurso, não haverá uma segunda Carta ao Povo Brasileiro. Suas
credenciais serão os resultados de seus oito anos de governo. De olho na
aversão dos investidores ao seu adversário, Bolsonaro resolveu prestigiar o
ministro Paulo Guedes e o presidente do Banco Central, Roberto Campos, ao se
deixar cercar por ambos na conferência virtual com a Pfizer. Não é capaz de
estender esse prestígio à sua base no Congresso, incapaz de barrar as mudanças
que desidratam a proposta que congela gastos para abrir espaço fiscal ao
auxílio emergencial.
A
entrada de Lula no cenário vai subir o “custo Centrão”, com reflexos nas contas
públicas. Bolsonaro sancionou, a contragosto, como já deixou claro ao próprio
presidente do BC, a autonomia do banco, mas tem como trunfo, para evitar a
escalada de juros nesse momento em que enfrenta a volta do petista, os 90 dias
de prazo que a mudança lhe deu. A partir da promulgação da emenda
constitucional da autonomia, em 24 de fevereiro, Bolsonaro tem até 90 dias para
enviar os nomes do presidente e dos diretores do Banco Central. Está dado que a
equipe é esta que aí está, mas não custa lembrar que a prerrogativa é dele de
confirmá-la.
A
ausência do ministro da Saúde do encontro virtual com a Pfizer sinalizou qual
será a saída do presidente para tirar a pandemia de suas costas. Eduardo
Pazuello é o problema e ele, Bolsonaro, a solução. Para enfrentar o novo
discurso do presidente, Lula mimetiza o presidente americano. Se as tragédias
pessoais de Joe Biden (a perda da primeira mulher e de uma filha bebê num
acidente de carro e de um filho para o câncer) alimentaram sua empatia com o
eleitor americano assolado pela pandemia, Lula também tem seu arsenal. Sua
segunda viuvez, que atribui à Lava-Jato, a morte de um neto de sete anos
enquanto estava na prisão e a de um irmão a cujo enterro foi proibido de comparecer:
“Queriam que eu fosse para um quartel do 2º Exército e meu irmão, dentro do
caixão, fosse me visitar”.
Desde
a decisão de Fachin, o mundo político em Brasília já se reposiciona. O Centrão
ficará onde está. Fincou sua praça pedagiada no governo Bolsonaro com uma
tarifa reajustada diariamente e usará os recursos arrecadados para se
fortalecer na negociação com quem assumir a estrada. Nos demais partidos, o
efeito da polarização será o de aumentar as candidaturas, não de reduzi-las. Se
a ausência de Lula levava à reunião de forças para enfrentar Bolsonaro, sua
presença estimula o lançamento de candidaturas visando à negociação de uma
aliança no futuro governo. É isso, por exemplo, que levou o MDB a namorar a
possibilidade de lançar o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ) e fez
com que o PSD filiasse o secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique
Meirelles, ex-candidato à Presidência pelo MDB, com vistas à disputa de 2022. A
postulação do governador João Doria virou o mote preferido das piadas que
chegam ao gabinete presidencial.
A
volta de Lula só enfraqueceu mesmo as candidaturas de fora da política, como a
do apresentador Luciano Huck, e ameaça a de adversários do campo da
centro-esquerda, como o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que foi pra cima. Disse
que o fato de Lula ser inocente não significa que seja honesto. Lula valeu-se
da mesma fleuma para responder ao ataque de Ciro (“Ele é um homem de 64 anos,
não pode ofender as pessoas como quando era jovem”) e ao elogio de Rodrigo
Maia, que foi ao Twitter para dizer que não é preciso gostar de Lula para
entender a diferença dele para Bolsonaro (“Se ele resolveu reconhecer algum
mérito no que fiz, fico agradecido [...] quem sabe está querendo construir uma
nova relação política”).
O sucesso da estratégia de Lula será diretamente proporcional à capacidade de contagiar seu próprio partido de sua lhaneza. A sobrevivência de um discurso ajuste-de-contas com aqueles que lhe deram as costas ao longo dos últimos anos jogará por terra o apelo de conciliação nacional com o qual o ex-presidente reapareceu e no qual aposta para tirar seu passado dos tribunais e devolvê-lo para o juízo das urnas.
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