terça-feira, 16 de março de 2021

Murillo Camarotto - Crítica e autocrítica, uma escolha difícil

- Valor Econômico

Lava-Jato poderia aproveitar a chance para fazer mea culpa

No seu abrupto retorno à primeira divisão da política nacional, Lula fez o que dele se esperava: defendeu a vacina, atacou Bolsonaro e flertou com o Centrão. Se a mensagem ficasse por aí, jogo jogado, mas o ex-presidente também mandou um forte abraço para Nicolás Maduro e jurou que, nos anos petistas, a Petrobras foi um exemplo de gestão. “E a autocrítica?”, perguntarão, imediatamente, muitos dos que sonham em ver Lula ajoelhar no milho e confessar o inconfessável à nação.

Sob a ótica da psicologia (simplificada, no caso em tela), a crítica é um ato público, enquanto que a autocrítica tem caráter mais particular e solitário. Ao atacarmos, olhamos para fora, normalmente com apoio da plateia - ou da claque, se preferirem. Já o mea culpa, uma vez externado, atinge de certa forma os nossos pares, os mais próximos, que provavelmente vão insistir em dizer que “não foi tão grave assim”, que “é assim mesmo”, que “tá tudo bem”.

Para visualizar melhor o raciocínio, é só deslocar a perspectiva para a Lava-Jato - cuja missa de sétimo ano será celebrada neste mês de março. Desde que as mensagens trocadas entre os procuradores vieram a público, aguarda-se a autocrítica da República de Curitiba. Mesmo nas forças-tarefa do Rio de Janeiro e de São Paulo (já devidamente carbonizadas), não se encontra um mísero procurador disposto à autopenitência.

Alguém espera que Sergio Moro e seus “blue caps” convoquem uma entrevista coletiva para explicarem, numa caprichada apresentação em Powerpoint, as estratagemas para investigar ministros de tribunais superiores? Ou, quem sabe, a manipulação de depoimentos e recomendações de testemunhas-chave?

Ao contrário, todos submergiram. A preocupação com a continuidade do contra-ataque político e judicial é tanta que Moro, assim como Deltan Dallagnol, chegaram ao ponto de elogiar, acanhados, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que tirou deles o maior troféu da Lava-Jato. Ainda assim, as manifestações ficaram longe de algo parecido com autocrítica.

Entre os procuradores, a avaliação é de que o problema - e o diabo - são os outros. Há uma leitura de que o STF “virou terra de ninguém” e que o processo de autofagia da Corte atingiu um novo patamar na semana passada, liderado pelo ministro Gilmar Mendes.

O magistrado certamente discorda e, provavelmente, não fará autocrítica nenhuma. A deterioração da imagem do STF é evidente e a maioria dos ministros dificulta a missão da sociedade de defender a instituição contra os extremistas. O circo envolvendo Lula e Moro ainda está longe do fim e terá na análise do recurso em plenário um novo e constrangedor episódio, seja qual for o desfecho.

Uma questão importante para o momento é saber se o aparato legal vigente no Brasil permite que o combate à corrupção do colarinho branco triunfe sem atalhos. Há, entre investigadores da Lava-Jato, uma inconfessável percepção de que a resposta é não.

Enquanto isso, uma fatia importante da classe política aproveita para vestir o avental de vítima e escapar da cadeia. A preocupação de Fachin em salvar os órgãos saudáveis do defunto da Lava-Jato deveria contar com maior respaldo político, especialmente daqueles políticos que faturaram votos surfando a onda da investigação. Alguma chance de autocrítica?

Aqui e ali, contudo, ela começa a aparecer. Pouco após o comício de Lula em São Bernardo, chamou a atenção a manifestação de Rodrigo Maia nas redes sociais. O ex-presidente da Câmara elogiou a postura do petista em relação a temas como pandemia, democracia, política externa e meio ambiente. Quase o chamou de estadista.

Em passado recente, Maia chorou de emoção no impeachment de Dilma Rousseff e votou em Jair Bolsonaro para presidente da República. Mais recentemente, admitiu arrependimento pelas escolhas de 2018 e confessou que, tivesse outra chance, votaria em Fernando Haddad. É verdade que só o fez após perder, de lavada, a eleição para o comando da Casa.

Semana passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso começou a puxar o bonde da autocrítica do PSDB - que era lavajatista até cair na rede de Moro. O movimento por ora é tímido e boa parte da bancada tucana no Congresso Nacional ainda bate continência para o capitão.

Protagonista do “BolsoDoria”, o governador de São Paulo sinalizou recentemente que pode disputar a reeleição, adiando a conhecida - e em várias ocasiões desmedida - ambição pelo Planalto. João Doria está em baixa com seu eleitorado, ironicamente por ter feito a coisa certa durante o combate à pandemia. Abrir mão da cabeça de chapa na eleição presidencial para derrotar Bolsonaro seria uma autocrítica não verbalizada do PSDB?

Ao preço de hoje, somente uma candidatura única de centro teria chances de fugir da bifurcação Lula-Bolsonaro. Mas no meio do caminho há o Centrão, que apoiou Alckmin em 2018, apoia Bolsonaro agora e cujo líder máximo, Arthur Lira (PP-AL), disse há poucos dias que Lula merece a absolvição.

Ao mesmo tempo em que trabalha para cremar os restos mortais da Lava-Jato e, de quebra, abocanhar nacos maiores da administração federal, o Centrão sinaliza a Lula que pode estar solteiro no próximo verão. Autocrítica, nesse caso, não vem ao caso.

Não, a imprensa não vai ficar de fora. Durante o auge da Lava-Jato, a disputa por furos das novas delações e operações fez com que o ponto de vista de procuradores, policiais e juízes prevalecesse sobre os argumentos dos acusados, muitas vezes relegados a mero protocolo. Ao longo do tempo, o jornalismo ajudou a construir uma imagem distorcida da operação, e agora se vê diante do compromisso ético de ajustá-la.

Em “O mal-estar da civilização”, Freud classifica o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento de uma sociedade. Vulgarizado no caldeirão da política brasileira, o exercício da autocrítica é uma etapa saudável do processo de autoconhecimento e deveria ser cobrada não apenas de um, mas de todos os atores.

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