Lava-Jato
poderia aproveitar a chance para fazer mea culpa
No
seu abrupto retorno à primeira divisão da política nacional, Lula fez o que
dele se esperava: defendeu a vacina, atacou Bolsonaro e flertou com o Centrão.
Se a mensagem ficasse por aí, jogo jogado, mas o ex-presidente também mandou um
forte abraço para Nicolás Maduro e jurou que, nos anos petistas, a Petrobras
foi um exemplo de gestão. “E a autocrítica?”, perguntarão, imediatamente,
muitos dos que sonham em ver Lula ajoelhar no milho e confessar o inconfessável
à nação.
Sob
a ótica da psicologia (simplificada, no caso em tela), a crítica é um ato
público, enquanto que a autocrítica tem caráter mais particular e solitário. Ao
atacarmos, olhamos para fora, normalmente com apoio da plateia - ou da claque,
se preferirem. Já o mea culpa, uma vez externado, atinge de certa forma os
nossos pares, os mais próximos, que provavelmente vão insistir em dizer que
“não foi tão grave assim”, que “é assim mesmo”, que “tá tudo bem”.
Para visualizar melhor o raciocínio, é só deslocar a perspectiva para a Lava-Jato - cuja missa de sétimo ano será celebrada neste mês de março. Desde que as mensagens trocadas entre os procuradores vieram a público, aguarda-se a autocrítica da República de Curitiba. Mesmo nas forças-tarefa do Rio de Janeiro e de São Paulo (já devidamente carbonizadas), não se encontra um mísero procurador disposto à autopenitência.
Alguém
espera que Sergio Moro e seus “blue caps” convoquem uma entrevista coletiva
para explicarem, numa caprichada apresentação em Powerpoint, as estratagemas
para investigar ministros de tribunais superiores? Ou, quem sabe, a manipulação
de depoimentos e recomendações de testemunhas-chave?
Ao
contrário, todos submergiram. A preocupação com a continuidade do contra-ataque
político e judicial é tanta que Moro, assim como Deltan Dallagnol, chegaram ao
ponto de elogiar, acanhados, o ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal
Federal, que tirou deles o maior troféu da Lava-Jato. Ainda assim, as
manifestações ficaram longe de algo parecido com autocrítica.
Entre
os procuradores, a avaliação é de que o problema - e o diabo - são os outros.
Há uma leitura de que o STF “virou terra de ninguém” e que o processo de
autofagia da Corte atingiu um novo patamar na semana passada, liderado pelo
ministro Gilmar Mendes.
O
magistrado certamente discorda e, provavelmente, não fará autocrítica nenhuma.
A deterioração da imagem do STF é evidente e a maioria dos ministros dificulta
a missão da sociedade de defender a instituição contra os extremistas. O circo
envolvendo Lula e Moro ainda está longe do fim e terá na análise do recurso em
plenário um novo e constrangedor episódio, seja qual for o desfecho.
Uma
questão importante para o momento é saber se o aparato legal vigente no Brasil
permite que o combate à corrupção do colarinho branco triunfe sem atalhos. Há,
entre investigadores da Lava-Jato, uma inconfessável percepção de que a
resposta é não.
Enquanto
isso, uma fatia importante da classe política aproveita para vestir o avental
de vítima e escapar da cadeia. A preocupação de Fachin em salvar os órgãos
saudáveis do defunto da Lava-Jato deveria contar com maior respaldo político,
especialmente daqueles políticos que faturaram votos surfando a onda da
investigação. Alguma chance de autocrítica?
Aqui
e ali, contudo, ela começa a aparecer. Pouco após o comício de Lula em São Bernardo,
chamou a atenção a manifestação de Rodrigo Maia nas redes sociais. O
ex-presidente da Câmara elogiou a postura do petista em relação a temas como
pandemia, democracia, política externa e meio ambiente. Quase o chamou de
estadista.
Em
passado recente, Maia chorou de emoção no impeachment de Dilma Rousseff e votou
em Jair Bolsonaro para presidente da República. Mais recentemente, admitiu
arrependimento pelas escolhas de 2018 e confessou que, tivesse outra chance,
votaria em Fernando Haddad. É verdade que só o fez após perder, de lavada, a
eleição para o comando da Casa.
Semana
passada, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso começou a puxar o bonde da
autocrítica do PSDB - que era lavajatista até cair na rede de Moro. O movimento
por ora é tímido e boa parte da bancada tucana no Congresso Nacional ainda bate
continência para o capitão.
Protagonista
do “BolsoDoria”, o governador de São Paulo sinalizou recentemente que pode
disputar a reeleição, adiando a conhecida - e em várias ocasiões desmedida -
ambição pelo Planalto. João Doria está em baixa com seu eleitorado,
ironicamente por ter feito a coisa certa durante o combate à pandemia. Abrir
mão da cabeça de chapa na eleição presidencial para derrotar Bolsonaro seria
uma autocrítica não verbalizada do PSDB?
Ao
preço de hoje, somente uma candidatura única de centro teria chances de fugir
da bifurcação Lula-Bolsonaro. Mas no meio do caminho há o Centrão, que apoiou
Alckmin em 2018, apoia Bolsonaro agora e cujo líder máximo, Arthur Lira
(PP-AL), disse há poucos dias que Lula merece a absolvição.
Ao
mesmo tempo em que trabalha para cremar os restos mortais da Lava-Jato e, de
quebra, abocanhar nacos maiores da administração federal, o Centrão sinaliza a
Lula que pode estar solteiro no próximo verão. Autocrítica, nesse caso, não vem
ao caso.
Não,
a imprensa não vai ficar de fora. Durante o auge da Lava-Jato, a disputa por
furos das novas delações e operações fez com que o ponto de vista de
procuradores, policiais e juízes prevalecesse sobre os argumentos dos acusados,
muitas vezes relegados a mero protocolo. Ao longo do tempo, o jornalismo ajudou
a construir uma imagem distorcida da operação, e agora se vê diante do
compromisso ético de ajustá-la.
Em “O mal-estar da civilização”, Freud classifica o sentimento de culpa como o mais importante problema no desenvolvimento de uma sociedade. Vulgarizado no caldeirão da política brasileira, o exercício da autocrítica é uma etapa saudável do processo de autoconhecimento e deveria ser cobrada não apenas de um, mas de todos os atores.
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