Bolsonaro
não muda. Não foi mudado pelo fator Lula; não em seu comportamento frente à
peste. (Será matéria para outro artigo; mas, à sombra do ex-presidente,
responderá sobretudo na economia, com uma derrama populista de dinheiros, com
Guedes, com tudo, para financiar a reeleição e pagar o preço do Centrão, que
subiu.)
Frente
à pandemia, rara escada para a agitação reacionária, Bolsonaro será ainda mais
radicalmente Bolsonaro; um mentiroso, investidor no sectarismo, que prospera no
choque, mas que sabe se moldar — poucos alcançam distorcer a própria palavra
como ele — ante a imposição do mundo real.
Irá
assim até o final, aquele que disse nunca ter se referido à peste como
“gripezinha”. Não nos iludamos com um baile de máscaras à tarde. A noite vem.
E, ao ato que pareceu indicar moderação, logo corresponderá a forja de novos
inimigos. E, do gesto que pareceu considerar uma médica séria para o Ministério
da Saúde, logo emergirá a intenção de pazuellizá-la.
Bolsonaro
é Bolsonaro. Não importa, pois, o futuro de Pazuello no governo, se fica ou
cai; ministro da Saúde que nunca foi, cavalo — no sentido espiritual — para que
Bolsonaro o fosse. Bolsonaro é. Outros pazuellos virão. Hajjar não topou.
Haverá quem tope. E Bolsonaro continuará sendo.
O padrão está dado. Aqui e ali, quando já sem alternativa, cederá ao mundo real. Ou não terá sido ele a se sentar com a Pfizer depois de desqualificar por meses o laboratório? Ou não terá sido ele a comprar uma vacina, a CoronaVac, que tratara como inimiga e jurara jamais adquirir?
O
mundo real se impõe, e ele se ajusta; a isso respondendo, sempre, com horror —
normalmente com ataques à democracia liberal.
Bolsonaro
opera em movimento pendular. De um lado, tocado pela imposição do mundo real, o
vírus que o empareda, que depreda a economia, que fere a popularidade, de
súbito se torna defensor da vacinação em massa — aquela contra a qual difundiu
bárbara desconfiança. De outro, pressionado pela necessidade de dar satisfação
— alimento — aos sectários que lhe compõem a base de apoio fundamental,
incomodados ante seus contatos com a civilização, fabrica guerras. É como se
equilibra. Bolsonaro se equilibra na instabilidade, na imprevisibilidade. O
chão em que será competitivo.
Enquanto
ousa se apregoar como alguém que sempre defendeu que a economia só teria
condições de se reabilitar organicamente por meio de vacinação em massa
(encaixou essa versão na semana passada, com Guedes, aquele que resolveria a
pandemia com R$ 5 bilhões); enquanto frita Pazuello, cavalo que verteu em boi
de piranha, o culpado por o Brasil não ter iniciado seu programa de imunização
em 2020, noutra mão Bolsonaro balança o berço de seus fanáticos cultivando
ameaças artificiais.
Já
foi, repito, a vacinação em massa; com os bolsonaristas mobilizados contra uma
imunização obrigatória que consistiria em invadirem nossas casas para nos
cravarem agulhas ao braço. Hoje, o mais influente inimigo fantasioso é o
lockdown; algo que nunca houve no Brasil, não até agora, mas contra o que o
bolsonarismo luta a batalha definidora do futuro. Um lockdown imaginário; que,
no entanto, transforma governantes em tiranos e justifica a constituição de
milícias da resistência. Governadores e prefeitos legitimamente eleitos, que
tomam medidas restritivas legais, vendidos, por Bolsonaro, como ditadores.
O
presidente que vestiu máscara e que foi lido como alguém que se amansava ante à
restituição dos direitos políticos de Lula sendo o que, no mesmo dia, pouco
depois de falar das Forças Armadas e em como era fácil baixar uma ditadura no
Brasil, afirmou ser aquele que teria como garantir nossa liberdade. Mais: o que
se apresentou — em construção típica de um autocrata, o nosso Viktor Orbán —
como “o garantidor da democracia”.
Começa
assim. Com “o meu Exército”; e não tarda chega-se à “minha democracia”. Já
chegamos a esta generosidade: “Eu sou a pessoa mais importante desse momento.
Faço o que o povo quiser”. Que povo? É relevante considerar o sentido de povo
para alguém como Bolsonaro; povo sendo aqueles que o apoiam — uma compreensão essencialmente
totalitária. O povo sendo aquele que vai à porta da mãe de um governador para
intimidá-la.
Veja-se
a maneira altiva como suprime filtros republicanos: “Como é que eu posso
resolver a situação? Eu tenho que ter apoio. Porque, se eu levantar a minha
caneta e falar shazam, eu vou ser ditador”. Depreende-se que, amparado (pelo
povo, segundo Bolsonaro), poderia agir como ditador sem ser ditador. É isso?
Claro
que ele sabe o que é estado de sítio; mas precisa deturpar o toque de recolher
— medida restritiva definida em lei — em ato discricionário, de modo a
substanciar seu lockdown tirânico. É desinformação golpista.
Que também necessita — projetando um futuro caótico — gerar pânico nuns, soprar o apito para outros. “Invasão de supermercados. Fogo em ônibus. Greves. Piquetes.” Manifesta-se aquele que foi o maior entusiasta — um agente estimulador — da revolta dos caminhoneiros que parou o país em 2018. Alguém cuja pregação armamentista deixou de se deter à velha defesa da propriedade privada para se fundamentar numa ideia de resistência civil à opressão de governantes. Gravíssimo.
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