O Globo
Como vivemos no mesmo mundo, é razoável
supor que os pastores bozofrênicos tenham acompanhado as duas dezenas de mortes
na Vila Cruzeiro, depois de mais uma letal operação policial.
Difícil também, pode-se afirmar com 99% de
certeza, que os mesmos religiosos não estejam informados da morte por asfixia
de um motoqueiro no interior sergipano, idem por policiais.
Desnecessário perguntar se tais pastores
ouviram as declarações entusiasmadas de apoio do notório Bozo à ação na Penha
carioca e à minimização da morte no camburão de gás no Nordeste.
Seria instrutivo, até reconfortante, saber
o que os líderes espirituais evangélicos sentiram ao ver as imagens agônicas de
Genivaldo dentro da viatura. Condoeram-se? Ficaram ao menos boquiabertos,
pasmados, com os gritos do seu semelhante clamando socorro?
Por certo, rapidamente puxaram outra imagem no Instagram. E deram um like na imagem de um cãozinho fofo. Calaram-se, enfim.
Pastores e seus epígonos parlamentares são
rápidos em lutar contra a aprovação do aborto —sempre em nome da vida, da alma
e do espírito do feto, mesmo que a mãe corra risco de vida ou que a gravidez
seja resultado de um estupro.
Não importa se a vítima tenha 10 anos de
idade.
O líder político da turma — já no caminho
de volta para sua casa na Barra da Tijuca — vocifera em comícios, em reuniões
ministeriais e a jornalistas oficiais seu desejo de armar a população.
Um rifle em cada mão. Bolsos vazios de
dinheiro, mas cheios de munição. É sua única política pública, descontando aí,
claro, a oposição visceral à vacinação infantil contra a Covid-19.
Certamente pode ter me escapado, mas não
soube de nenhum pastor bozofrênico a lamentar a morte brutal do motoqueiro em
Sergipe.
A bancada do dízimo, de seu lado, achou
normal a polícia matar duas dezenas de pessoas na comunidade carioca e continua
histericamente lutando contra o aborto.
Difícil entender a lógica. Luta-se pela
vida em gestação, mas extermina-se a vida já existente, visível em seu
desassombro de desproteção.
O Brasil tem taxa alarmante de homicídios —
em especial contra os jovens negros. Qualquer bom cristão, alarmado e
compungido, diria se tratar de uma matança premeditada contra um grupo
determinado.
Do púlpito evangélico, no entanto, não se
escuta nenhum lamento por tantas vidas perdidas. É como se fossem mortes
desejadas. Daí o silêncio cúmplice diante da sanha bozonarista em colocar um
revólver na mão de cada brasileiro.
Parece haver uma torcida religiosa pela
repetição no Brasil de algo como as chacinas de Tulsa, Uvalde ou Buffalo, nos
Estados Unidos. É possível que se veja aí a chegada do país ao Primeiro Mundo.
Nunca se falou no Brasil tanto em Deus,
pátria e família. Mesmo os milicos do golpe de 64 eram mais parcimoniosos em
tamanha patacoada. Antes não se defendeu, em enchentes de perdigotos, o livre
trânsito das armas e se acumpliciou oficialmente à indiscriminada violência
policial contra os cidadãos.
Jamais houve tanta aquiescência de líderes
espirituais com o plano presidencial de sedição para a liberação das armas.
Assim como a educação e a música sertaneja,
acredite, a religião no Brasil já foi algo em defesa da vida, da tolerância e
do desvalido.
Alguma coisa aconteceu no Reino dos Céus
para que o país estivesse povoado por pastores incapazes de condenar a
violência contra o rebanho de fiéis. Ao menos poderiam estar sintonizados com o
discurso contemporâneo de defesa do consumidor e protestar contra a morte de
quem paga dízimos. Enfim, de seus clientes.
Nem isso se ouve. Nem uma lufada de
irmanação ou empatia. Nunca uma mão na cabeça, só no seu bolso.
O contribuinte evangélico doa seus poucos
tostões não corrompidos pela inflação bozofrênica, mas nem sequer encontra
guarida na palavra de seu guia religioso. Ou melhor, ouve que seria bom comprar
uma arma, munição e treinar tiro.
O amparo que lhe resta é contar com um
colete à prova de bala.
Imagino o que diria Frei Rosário, o
espanhol que me ensinou a rezar, numa capelinha que não existe mais (hoje é uma
agência bancária!). Dele guardo a lembrança da repetição dos Dez Mandamentos
naquele seu sotaque pesado, com seu ar circunspecto. De todos, o mais
desprezado, esquecido e solto sem repreensão:
— Não matarás, não matarás.
Também penso em Dom Paulo Evaristo Arns, o
herói discreto da luta contra a ditadura, que salvou tantas vidas de presos
políticos e ajudou a denunciar a carestia que humilhava a todos.
Nem Dom Paulo, tampouco o severo Frei
Rosário se calariam ao ver seu rebanho abatido à bala. Sabiam identificar o
demônio.
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