O Estado de S. Paulo
O Brasil vive um período delicado. Um jogo
político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal tipo de ‘brincadeira
macabra’.
A morte é o destino dos seres humanos, ao
fim de um ciclo natural de vida, que se apresenta como uma espécie de enigma da
condição humana. De toda maneira, as pessoas se acostumam gradativamente com
essa ideia através da idade e de doenças sucessivas. Logo, passa a ser tida por
normal, embora essa normalidade seja a do corpo inerte tomado por bactérias e
vermes. A religião veio a ser uma forma de conforto, graças a ideias como a de
“salvação”, “outro mundo” e “vida eterna”, entre outras acepções. Pascal, célebre
filósofo católico, dizia que a vida era uma forma de “distração”, de
“divertimento”, usufruída pelas pessoas procurando esquecer a morte inexorável.
Estados totalitários, aqui, inovaram. Tiraram a morte do seu ciclo natural e conferiram-lhe uma significação propriamente política, de poder, submetendo agrupamentos humanos por raça, religião ou mera diversidade à violência extrema. No nazismo, seres humanos, como judeus, homossexuais, ciganos e testemunhas de Jeová, considerados como “subumanos”, terminaram, por via de consequência, seus dias em câmaras de gás e nos crematórios. Extirpados da categoria dos humanos, a morte violenta lhes foi imposta.
Os comunistas não ficaram atrás, decretando
a morte violenta pela fome orquestrada, imposta pela violência política a
aproximadamente 3,2 milhões de ucranianos num evento que passou a ser
denominado de Holodomor, morte por inação, num episódio da fome planejada pela
polícia política stalinista nos anos 30 do século passado, com homens e
mulheres esquálidos, cadáveres ambulantes, tendo o canibalismo como um de seus
efeitos.
O processo civilizatório tem se
caracterizado por prolongar a vida, por evitar a morte violenta, em sociedades
que se organizam pela segurança pública, por sistemas de saúde públicos e
privados, pelo avanço científico e tecnológico. As pessoas se sentem assim
seguras, reconfortadas e evitam a morte, tida por uma forma arbitrária e
injustificada de violência. Coisas tão simples como remédios e vacinas, além da
integridade física que estaria ao abrigo do arbítrio, são manifestações deste
progresso, considerado, então, como algo normal. O que ocorre, porém, se cenas
de violência, patrocinadas inclusive por forças policiais, põem em xeque tal
concepção?
Um cidadão normal, chamado Genivaldo, foi
gasificado num porta-malas de uma viatura da Polícia Rodoviária Federal no
Estado de Sergipe. O espetáculo do horror introduz a morte violenta patrocinada
pelo Estado, cuja função – convém sempre lembrar – consiste em proteger a vida
e o patrimônio dos cidadãos. Hobbes já dizia que essa é sua função essencial,
sem a qual a sociedade recairia num estado de selvageria, denominado por ele de
guerra de todos contra todos. A justificativa inicial utilizada pelo arbítrio
foi a de um “mal súbito” sofrido pela vítima, expressão que só pode ser
considerada como uma piada macabra. Mal, sim, existe, mas o de uma sociedade
que começa a se acostumar com tal tipo de arbitrariedade. Súbito, sim, o
descaramento e a ausência de compaixão.
A chacina no Rio de Janeiro, com forças
policiais agindo impunemente, matando inocentes no máximo arbítrio, expõe essa
faceta de uma sociedade que perde controle de si. A polícia, pilar da
organização estatal, abandona sua função, fazendo com que pessoas pereçam pela
morte violenta. A segurança dos cidadãos não é mais assegurada de uma forma
aberta. Nem o disfarce é utilizado. Se o Estado não cumpre mais sua missão, o
que podemos esperar, senão a irrupção da crueldade, da selvageria? Há
justificativa para isso?
Em Pernambuco, mais de uma centena de
pessoas foi vítima de inundações e desabamentos, em outro teatro do horror que
apenas escancara o que já vem acontecendo em outras cidades. Nada disso é
normal, na acepção de que seria inevitável. Calamidades naturais fazem parte do
mundo, mas o que diferencia um Estado de outro são a prevenção e a forma de
enfrentamento desse tipo de fenômeno. Sismógrafos foram inventados para
prevenir as consequências desastrosas de terremotos, com operações de defesa
civil e afastamento da população atingida para outras regiões. Habitações em
zonas de risco podem ser solucionadas por políticas habitacionais e outras
ações estatais. Foi mais uma vez desastroso o discurso presidencial, ao
considerar as catástrofes como “naturais”. Seus efeitos não o são, se houver
políticas sociais ancoradas na ciência e na tecnologia.
O Brasil vive um período particularmente
delicado, pois estas formas de “morte social” passam a ser tidas por normais.
Nem a compaixão se faz mais presente nas ações governamentais. Se o Estado não
se impõe, protegendo os malfeitores e relegando os policiais honestos e
conscientes, é porque se encaminha para formas autoritárias. Trata-se, na
verdade, de um jogo político com a morte. A sociedade não pode pactuar com tal
tipo de “brincadeira macabra”.
*Professor de filosofia na UFRGS.
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