segunda-feira, 6 de junho de 2022

Marcus André Melo*: Perplexidade na Colômbia

Folha de S. Paulo

Bipartidarismo secular, ausência de populismo e partilha de poder moldaram democracia colombiana

Na Colômbia, um outsider será provavelmente eleito presidente. E isso em um país marcado por um partidarismo sem paralelo na região. Mas um olhar atento revela que esse resultado não é paradoxal.

Três fatores marcam historicamente o sistema político colombiano. O primeiro é que dois partidos —Conservador e Liberal— dominaram a política por um século e meio, engendrando um hiperpartidarismo peculiar. A excepcional animosidade entre eles levou a confrontos com mais de 100 mil mortos, em 1902, e 170 mil mortos entre 1948 e 1960 (no episódio conhecido como La Violencia, o qual gerou uma especialidade temática: a "violentologia"). E isso antes da criação das Farc (1964).

No entanto, em 1958, os dois partidos fizeram um pacto formal de partilha de poder após derrubarem o general Rojas Pinilla (1953-1957), que ascendeu ao poder através de um golpe. O pacto envolvia a paridade partidária nos ministérios e cargos públicos; Presidência rotativa, a cada quatro anos; quórum para aprovação de leis de 66% etc. Durou 16 anos.

O segundo fator é que historicamente os militares quase não cumpriram papel político no conflito partidário (o golpe de Rojas Pinilla é exceção). Os confrontos armados davam-se entre milícias de caudilhos regionais. O monopólio da violência era mais marcadamente partidário que estatal.

O terceiro é o fato de que nunca surgiu um Perón, um Vargas, um Cárdenas, um Ibáñez; ou seja, lideranças ou partidos que incorporassem politicamente as novas massas urbanas. Gaetán, símbolo da renovação ("Yo non soy um hombre, soy el pueblo"), foi assassinado, ao que se seguiu o Bogotazo (mais de mil mortos) deflagrando La Violencia. O país não renovou suas elites políticas, permanecendo com estruturas partidárias e dinastias políticas herdadas do século 19.

Paradoxalmente, o instrumento que pacificou o país por duas décadas causou sua debacle. Ausência histórica do populismo e pacto consociativo marcaram também a Venezuela, que teve o Pacto de Punto Fijo no mesmo ano (1958). A reação a esses pactos também teve semelhanças: foi denunciado por outsiders como um arranjo excludente que permitia a perpetuação de elites corruptas no poder. As Farc e o bolivarianismo são as versões radicalizadas dessa reação.

O conflito entre combater ou negociar com a guerrilha provocou cisão interna no partido Liberal em 2002. Uma ala uniu-se aos conservadores e garantiu a vitória de Uribe, ex-liberal que criou seu próprio partido. O sucesso inesperado de uma liderança individual levou ao colapso do bipartidarismo, mas não do sistema partidário.

A vitória de um outsider sem partido nem base congressual, isso sim pode fazê-lo.

*Professor da Universidade Federal de Pernambuco e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA).

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Esperando o tempo em que a América católica e seus ridículos tiranos seja coisa do passado.