O Estado de S. Paulo
Temos assistido ao triste espetáculo diário
do incentivo ao conflito e ao armamentismo irresponsável da população
brasileira.
As Forças Armadas sempre cumpriram papel
crucial, de organismo de defesa do País, protegendo nossas fronteiras e, nas
últimas décadas, apoiando o Estado Democrático de Direito. Nossa Constituição
coloca o presidente na posição de chefe das Forças Armadas com a clara
expectativa de que exerça esse poder pelo povo, para o povo e em nome do povo –
jamais permitindo a instrumentalização e o abuso. Aliás, o respeito à
Constituição e aos princípios da separação dos Poderes e da prevalência do
interesse público é compromisso visceral republicano.
Mas nem sempre foi assim, pois já
vivenciamos momentos em que nossos presidentes do passado usaram as Forças
Armadas com fins políticos, rompendo a ordem democrática e institucional. O
marechal alagoano Deodoro da Fonseca instalou a República por golpe militar em
15 de novembro de 1889. O ex-sargento gaúcho Getúlio Vargas, em 1937, implantou
o Estado Novo, governando de forma ditatorial até 1945; e o marechal cearense
Castelo Branco foi o escolhido pelos golpistas militares de 1964 para assumir o
primeiro governo federal do período da ditadura, que duraria 21 anos.
Eis que, passados 37 anos do fim da ditadura, o capitão paulista reformado, hoje presidente Bolsonaro, tem sinalizado na direção da tirania, ao reapresentar a tese do voto impresso auditável, já examinada pelo Congresso Nacional e rechaçada – parecendo desprezar a votação ocorrida. É ato totalitário pôr em dúvida a realização de eleições em 2 de outubro, assim como questionar a confiabilidade do sistema de urnas eletrônicas, utilizado em mais de 40 nações do mundo, por meio do qual ele mesmo foi eleito oito vezes, sem nunca ter reclamado antes.
Tenta-se construir a teratológica hipótese
da apuração eleitoral paralela pelas Forças Armadas, ao arrepio da
Constituição, já que a atribuição é exclusiva do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), cuja criação foi de importância capital para reduzir a corrupção
eleitoral reinante no Brasil e que o projeto de Código Eleitoral em discussão
no Senado pretende enfraquecer significativamente. Acaso o presidente da
República admitiria que outra autoridade pudesse exercer paralelamente seu
poder exclusivo, como o de indicar ministros do STF, do STJ e o
procurador-geral da República ou de conceder indultos, como ele propõe ao TSE
em relação à apuração dos votos?
Não é a primeira vez que são praticados
movimentos em direção a uma hipertrofia militar, neste mandato. Desde o início,
seguidores presidenciais repetem à exaustão, sem embasamento constitucional, a
tese insustentável de que as Forças Armadas seriam o Poder Moderador, que houve
no Brasil, durante o Império, e depois deixou de existir, dando lugar à
tripartição do poder: Executivo, Legislativo e Judiciário.
As Forças Armadas e seus líderes evoluíram
ao longo de nossa história republicana e têm como norte o respeito à
Constituição. O mesmo vale para a segurança pública, comandada pelos
governadores dos Estados, cujos integrantes não se deixarão levar por blefes
golpistas nem por narrativas elaboradas a partir de referências apontadas por
algoritmos de redes sociais, descoladas do mundo real, para justificar eventual
derrota. O compromisso de militares e do corpo da segurança pública é com o
respeito à soberania do voto do povo no próximo dia 2 de outubro.
Faltam quatro meses até lá, mas o
presidente acaba de se posicionar no sentido de que não comparecerá aos debates
de primeiro turno, secundado por Lula, caso aquele efetivamente não compareça.
A exemplo das eleições de 2018, os eleitores poderão ser privados do confronto
de ideias de todos os candidatos.
Negar informações não surpreende, porque o
presidente abusou do poder de tornar sigilosos documentos que deveriam ser
públicos, mandando cidadãos aguardarem por cem anos o fim do sigilo – é grave
nosso declínio em transparência pública.
O presidente fala em defesa da liberdade,
mas tudo não passa de embalagem falsa, narrativa enganosa. Roberto Jefferson e
Daniel Silveira, para ficarmos em apenas dois exemplos, pregaram contra o
Estado Democrático de Direito, e, obviamente, a imunidade parlamentar não os
blinda sem limites – não podem dizer o que quiserem. Da mesma maneira, se um
parlamentar for à tribuna e pregar pela morte de judeus, negros ou pessoas
homoafetivas, jamais se poderá argumentar que estão cobertos pela
inviolabilidade da imunidade parlamentar, que lhes garantiria liberdade de
expressão. Pregar pela morte da democracia é conduta ainda mais grave. Conceder
o presidente indulto após condenação pelo STF por este crime é estopim
incendiário à democracia, ato violador da separação constitucional dos Poderes.
Temos assistido ao triste espetáculo diário
do incentivo ao conflito e ao armamentismo irresponsável da população, sob o
mantra de que “povo armado não é escravizado”. Muitos obedecem como zumbis ao
chamamento, que utiliza linguagem que obscurece verdades e semeia a ideologia
de um quase fanatismo. Consegue-se arregimentar, via redes sociais, uma matilha
de vândalos que idolatram cegamente seu líder, dispostos a tudo, sob seu
comando. Seria ele um novo Nero, retratado em Quo Vadis, de Henryk Sienkiewicz, que ateia fogo em
Roma apenas para se inspirar, pelo ardor das labaredas, tocando sua lira?
*Procurador de justiça no MPSP, doutor em Direito
pela USP, escritor, professor, palestrante, é idealizador e presidente do Instituto
‘não aceito corrupção’
Um comentário:
A História do Brasil é pontilhada por golpe militar,tomara que seja coisa do passado.
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