quarta-feira, 27 de julho de 2022

O que a mídia pensa - Editoriais / Opiniões

Editoriais / Opiniões

A sociedade reage ao arreganho bolsonarista

O Estado de S. Paulo

Ante a gravidade da ameaça de Bolsonaro à democracia, reiterada perante embaixadores estrangeiros, a nova mobilização da sociedade civil precisa ser estimulada

O presidente Jair Bolsonaro pode sentir-se acima da lei, do decoro e da honestidade intelectual – e continuar difamando as urnas eletrônicas, criando animosidade contra as instituições e tentando criar um ambiente propício à desordem e à ruptura institucional. No entanto, se pensava que não haveria reação da população, enganou-se. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), tolera sua escalada de afronta às eleições. O procurador-geral da República, Augusto Aras, também. Mas a sociedade não. Há limites.

Depois da reunião do dia 18 de julho com embaixadores, na qual Jair Bolsonaro disse ao mundo que a democracia brasileira não era confiável, o País acordou. Houve um sem-número de depoimentos de entidades e pessoas que participaram e ainda participam do processo eleitoral atestando a lisura e a segurança do nosso sistema de votação e apuração. A democracia brasileira não está nas mãos de algumas poucas pessoas. É uma construção coletiva, robusta e admirada – aqui e no mundo inteiro.

Além disso, os últimos ataques de Jair Bolsonaro contra o sistema eleitoral suscitaram na população uma nova compreensão da dimensão e gravidade das ameaças do bolsonarismo ao Estado Democrático de Direito. Em número crescente, entidades e lideranças civis vêm cerrando fileiras em defesa da integridade das eleições e da Justiça Eleitoral. Não há espaço para retrocesso.

Uma das iniciativas é a reedição da Carta aos Brasileiros de 1977, de autoria do jurista Goffredo da Silva Telles Júnior. Lido em agosto daquele ano na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, o documento manifestava repúdio ao regime militar e pedia a volta da democracia. A ser lida no mesmo local, no próximo dia 11 de agosto, pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, a nova Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito denuncia o “momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições”.

“Independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições”, diz o manifesto deste ano do Largo de São Francisco, recordando que “são intoleráveis as ameaças aos demais Poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional”.

É surpreendente – e tristemente sintomático dos tempos atuais – que a sociedade brasileira precise reafirmar, como diz a carta a ser lida nas Arcadas, que “ditadura e tortura pertencem ao passado” e que “a solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições”. A boa notícia, a confirmar o isolamento dos autoritários, é que o documento vem recebendo amplo apoio dos mais diversos setores da sociedade brasileira. Ninguém preocupado com o País quer saber de bagunça com as eleições ou de ruptura da ordem constitucional.

Entre outras muitas iniciativas em defesa da democracia, vale destacar uma manifestação da Academia Paulista de Letras por sua contundência. “O roteiro para a contestação do resultado das urnas se desenvolve sob as vistas de todos e ameaça repetir, como farsa, a história de ataque às instituições, como ocorreu nos EUA”, diz o texto. “Nesse quadro de incertezas e grandes riscos, a Academia Paulista de Letras conclama a sociedade civil a manter-se atenta na defesa do Estado Democrático de Direito, das instituições, da segurança do sistema eleitoral e do respeito ao resultado da manifestação dos eleitores.”

Como a confirmar os piores temores, o governo de Jair Bolsonaro vestiu a carapuça. Para o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira (PP-PI), as manifestações em defesa das eleições são um ataque ao presidente da República. Sem nenhum pudor, o Palácio do Planalto escancara que não está do lado da democracia. A sociedade tem motivo, portanto, para estar alerta. Os liberticidas e autoritários não passarão.

O temporário que se torna permanente

O Estado de S. Paulo

Se novo piso do Auxílio Brasil for mantido em 2023, evitar a ruína fiscal do País exigirá do futuro presidente inédita capacidade de articulação política para aprovar reformas

Funcionários públicos experientes em Brasília costumam dizer que nada assume caráter mais permanente no Orçamento do que aquilo que nasce para ser temporário. Essa máxima vale para todo tipo de renúncia fiscal criada para impulsionar um setor por um tempo e que acaba por ser renovada sucessivamente, mas vale também para o caso do reajuste do piso do Auxílio Brasil, que passará a R$ 600 a partir de agosto. A crise econômica tem levado 350 mil novas famílias a se cadastrarem no programa a cada mês, e a fila de espera oficial já atinge 1,6 milhão – sem contar a fila da fila, que já estaria próxima de 3 milhões.

Nada no cenário macroeconômico indica que a situação dessas pessoas mudará a ponto de não precisarem mais dessa ajuda daqui a seis meses, tanto que os candidatos mais bem posicionados nas pesquisas eleitorais obviamente já se comprometeram a manter o benefício neste mesmo valor em 2023. O que é essencial, e nem o presidente Jair Bolsonaro nem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva disseram, é saber quais medidas serão necessárias para financiar o programa. Em 2021, o antigo Bolsa Família demandava R$ 35,6 bilhões do Orçamento. Com o reajuste do piso e a inclusão de novos beneficiários, o custeio do Auxílio Brasil já havia subido a R$ 89 bilhões neste ano. Zerar as filas e elevar o valor mínimo do benefício a R$ 600 exigirá mais R$ 26 bilhões entre agosto e dezembro.

Mas manter o piso do programa em 2023 elevará seu custo total a nada menos que R$ 151,4 bilhões, segundo reportagem do Estadão, quadruplicando os dispêndios federais com benefícios sociais em dois anos. Essa decisão terá duas consequências imediatas. A primeira é aumentar a fatia de gastos obrigatórios dentro do Orçamento – benefícios sociais e assistenciais, aposentadorias e salários já consomem cerca de 95% da peça orçamentária. A segunda é reduzir ainda mais o espaço disponível para as despesas discricionárias, rubrica estimada em R$ 120 bilhões a R$ 130 bilhões que inclui o pagamento de contas de energia e água, os combalidos investimentos e as imponentes emendas de relator, base do “orçamento secreto”. O auxílio de R$ 600 exigiria reduzir o custeio da máquina pública a algo entre R$ 70 bilhões e R$ 80 bilhões em 2023, um “desafio considerável”, reconheceu o secretário especial de Tesouro e Orçamento, Esteves Colnago.

Ao apostar na PEC Kamikaze para aumentar a competitividade de sua candidatura à reeleição, Bolsonaro fez muito mais do que criar exceções temporárias ao teto restritas a seu mandato. Sua ruinosa gestão, na realidade, minou qualquer possibilidade de um futuro governante conseguir cumprir o teto. O ministro da Economia, Paulo Guedes, pode repetir que “o fiscal está forte” quantas vezes quiser, mas a piora das expectativas do mercado para o crescimento, inflação e juros simplesmente reflete a completa ausência de uma âncora fiscal crível a partir de 2023.

Evitar a ruína do País demandará do próximo governo a realização das sempre adiadas reformas estruturantes, e isso exigirá do futuro presidente uma inédita capacidade de articulação política. Será preciso construir consenso em torno de uma reforma administrativa para reduzir o gasto público com servidores que estão sem reajuste salarial desde 2017. Será preciso obter apoio de governadores e prefeitos para aprovar uma reforma tributária que talvez imponha novas perdas a Estados e municípios já obrigados a se contentar com receitas menores em nome do desespero eleitoral do presidente. Será preciso convencer o Congresso a abrir mão das bilionárias emendas parlamentares e do controle tácito do Orçamento para devolvê-lo ao Executivo. Será preciso reconstruir as bases do Auxílio Brasil, reformular os benefícios para ajudar quem mais precisa e resgatar suas contrapartidas. Sem essas reformas, restaram como opções para financiar essas despesas o impopular aumento de impostos ou a desastrosa emissão de dívida pública, ambas alternativas de altíssimo custo para a credibilidade de qualquer governo em início de mandato.

CAC, bom negócio para o PCC

O Estado de S. Paulo

Descontrole na emissão de certificados de CACs permite que o bando pague menos para reforçar seu arsenal

O Primeiro Comando da Capital (PCC) descobriu um jeito de aumentar o seu poder de fogo, que já é assustador, por meio de um esquema muito mais barato do que o contrabando de armas da Bolívia e do Paraguai. Membros da facção criminosa, ou “laranjas” cooptados pelo bando, têm conseguido obter do Exército certificados de Colecionador, Atirador Desportivo e Caçador (CAC). Com o documento, compram armas legalmente, incluindo as de grosso calibre, por preços que chegam a ser 65% menores do que os praticados no mercado ilegal. Ou seja, a um só tempo, a maior organização criminosa em atividade no Brasil aumenta seu poderio bélico e financeiro. Uma temeridade sobre a qual já havíamos nos posicionado poucos dias atrás (ver editorial Incúria perigosa, de 23/7/2022).

Mas é caso de voltar ao tema. O Estadão revelou que a apreensão de sete armas de fogo com um membro do PCC em Uberlândia (MG) não foi um episódio isolado. Como foi noticiado, o homem, cuja longa ficha criminal estava  à distância de “uma simples consulta no Google”, como disse o magistrado que determinou a busca e apreensão, obteve do Exército o certificado de CAC, com o qual pôde comprar o pequeno arsenal.

No Rio de Janeiro, Vitor Furtado, sujeito que atende pela singela alcunha de “Bala 40”, foi preso pela polícia carioca ao tentar vender nada menos do que 26 fuzis, entre outras armas, para bandidos. No Lageado, na zona leste da capital de São Paulo, policiais do Departamento de Narcóticos (Denarc) apreenderam um fuzil, uma carabina, duas pistolas e dois revólveres com Diego Izidoro, acusado de ser integrante de um esquema de lavagem de dinheiro do PCC.

Todas essas armas em poder dos bandidos, nos três casos conhecidos até agora, foram compradas legalmente com certificados de CAC expedidos pelo Exército, indicando que o controle do Exército é falho e que o crime organizado viu nessa vulnerabilidade do processo de concessão dos registros de CAC uma nova oportunidade de negócios.

Os especialistas em segurança pública são unânimes em relacionar o aumento exponencial na concessão de certificados de CAC no Brasil à política do presidente Jair Bolsonaro de facilitar ao máximo o acesso a armas de fogo pelos cidadãos. “Tudo isso (o afrouxamento das regras para compra de armas) facilitou o acesso dos bandidos às armas e munições”, disse Marcos Carneiro Lima, ex-delegado-geral da Polícia Civil de São Paulo. O promotor Lincoln Gakiya, um dos maiores especialistas do País em combate ao crime organizado, sobretudo ao PCC, foi taxativo: “É muito fácil pegar um ‘laranja’ e obter um certificado de CAC”.

Tão ou mais intolerável do que essa frouxidão no processo de emissão dos certificados de CAC é o silêncio das instituições. Diante dos casos gravíssimos apurados pela reportagem, o Estadão procurou o Exército, o Palácio do Planalto e o Ministério da Justiça. Até ontem, não havia obtido resposta. Às autoridades não assiste o direito ao silêncio. Ao fim e ao cabo, não estão sonegando informações da imprensa, mas da sociedade à qual devem servir.

Inquéritos na gaveta

Folha de S. Paulo

Procuradoria mostra submissão ao menosprezar denúncias contra atos de Bolsonaro na pandemia

São abundantes as evidências da negligência com que Jair Bolsonaro e seus auxiliares lidaram com a pandemia de Covid-19, que ceifou as vidas de mais de 677 mil brasileiros.

O presidente fez de tudo para sabotar o combate à doença. Boicotou medidas de proteção da população, investiu em tratamentos inócuos e postergou por meses a compra de vacinas que poderiam ter evitado milhares de mortes.

Nesta segunda (25), a Procuradoria-Geral da República fez pouco de tudo isso ao propor o arquivamento de 7 das 10 investigações iniciadas a partir das denúncias da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado que examinou as ações do governo na crise sanitária.

Para a vice-procuradora-geral, Lindôra Araújo, que assina os despachos, o juízo feito pela CPI ao analisar a conduta do presidente é meramente político e não há como enquadrar seus atos nos crimes descritos pelo Código Penal.

Se o mandatário incentivou aglomerações e desrespeitou normas que prescreviam o uso de máscaras, ela argumentou, não se pode culpá-lo pelo comportamento dos que compareceram a seus eventos sem seguir as orientações médicas.

Bolsonaro pode ter feito vista grossa ao ser informado por um aliado de irregularidades nas negociações de vacinas no Ministério da Saúde, mas a procuradora concluiu que não há como incriminá-lo porque ele não tinha obrigação de agir diante das suspeitas.

Também não cabe reparo à aposta na cloroquina para enfrentar o coronavírus, porque o presidente tinha boas intenções. "Para o direito penal brasileiro, o agente que age sinceramente acreditando nos recursos de tratamento poderá até ser tido como inculto, mas não charlatão", ela escreveu.

As respostas às imputações feitas pela CPI desafiam o bom senso, ofendem a memória das vítimas da calamidade e demonstram os riscos criados pela domesticação que Bolsonaro promoveu nas instituições encarregadas de fiscalizá-lo.

Desde a escolha de Augusto Aras para a chefia da Procuradoria, o mandatário passou a contar com um aliado contemporizador numa função essencial para sua sobrevivência política. Aras joga parado, e Bolsonaro ganha tempo com isso.

Como o procurador-geral é a única autoridade com poderes para propor ações contra o presidente na área criminal, o Supremo Tribunal Federal costuma acolher suas opiniões em casos assim, e é possível que o faça mais uma vez agora.

A deferência terá custo alto. Se Bolsonaro não conseguir novo mandato nas eleições de outubro, será difícil retomar as ações e responsabilizá-lo pela incúria na pandemia. Se for reeleito, ele só poderá responder por atos do primeiro mandato após deixar do cargo.

Máscara no chão

Folha de S. Paulo

Alguns sucessos militares e políticos fazem Rússia admitir objetivo de destruir a soberania da Ucrânia

A oscilação do arco narrativo russo acerca de sua campanha militar contra a Ucrânia segue fielmente o desempenho de suas tropas, no solo do vizinho desde 24 de fevereiro.

Assim que os primeiros mísseis caíram, Vladimir Putin declarou o objetivo de desnazificar e desmilitarizar o rival, além de evitar sua entrada em estruturas ocidentais como a Otan, a aliança militar liderada pelos EUA, e garantir a autonomia dos separatistas russófonos do Donbass, no leste ucraniano.

Da primeira missão ninguém mais fala, por fantasiosa. Sobre a segunda, pode-se argumentar que a Ucrânia esteja se militarizando mais rapidamente, apesar de a enxurrada de armas ocidentais parecer distante de deter os russos.

O sucesso de Putin é maior, contudo, na inviabilização do Estado ucraniano, como descrito nos dois últimos itens de sua pauta inicial.

A União Europeia pode até prometer uma vaga a Kiev, mas isso é ilusão: mesmo sem o conflito o país não reunia condições para ser aceito no bloco. Quanto a chegar à Otan, que luta por procuração, o caminho é ainda mais bloqueado por temores de ampliação da guerra.

Putin optou pelo cinismo. Agiu para derrubar o governo de Volodimir Zelenski numa tacada única, mas, ao fracassar militarmente por soberba tática, negou buscar isso. Descartou querer ganhos territoriais, apesar de ter anexado a Crimeia em 2014 e fomentado a guerra civil no Donbass, que incubou a tragédia ora em curso.

Agora, a máscara caiu. Em duas falas, o chanceler russo entregou o jogo. Segundo Serguei Lavrov, um dos decanos da diplomacia mundial, a Rússia não se contentará com o Donbass.

Quer o sul ucraniano, a saber se o território que já ocupa ou toda a costa até o enclave que mantém na Moldova, e tem por meta livrar os ucranianos do "fardo desse regime absolutamente inaceitável". Ou seja, destruir a soberania do país.

A candura de Lavrov acompanha a mudança de ventos da guerra. A pressão sobre a Europa com o fechamento de torneiras de gás russo e racionamentos programados só fará aumentar a instabilidade dos governos ante o fastio com a crise.

No campo de batalha, ganhos lentos, mas firmes, sugerem a consolidação da posição militar russa, mais sóbria agora. Reveses poderão fazer Putin buscar remendar as fantasias rasgadas, o que será inócuo tanto para adversários céticos como para aliados que já não se importam com o estado delas.

PGR não pode abrir mão de seu papel numa democracia

O Globo

É frustrante pedido para que STF arquive investigações contra o governo abertas com base na CPI da Covid

A Procuradoria-Geral da República (PGR) jogou para debaixo do tapete os indícios de crimes e irregularidades descobertos pela CPI da Covid sobre a conduta do atual governo na pandemia que já tirou a vida de quase 700 mil brasileiros. Na segunda-feira, nove meses depois de ter recebido o relatório final dos senadores, e faltando apenas dois para as eleições, a PGR pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) o arquivamento de oito das dez investigações preliminares contra o presidente Jair Bolsonaro, ministros, ex-ministros e aliados do Planalto.

O despacho da PGR, assinado pela vice-procuradora Lindôra Araújo, braço direito do procurador-geral Augusto Aras, faz malabarismos para rejeitar as conclusões da CPI. É o caso das acusações de charlatanismo contra Bolsonaro e integrantes do governo por terem promovido o famigerado “tratamento precoce” contra a Covid-19 e incentivado o uso da cloroquina, comprada aos borbotões com desperdício de recursos públicos, apesar de ineficaz no combate à doença.

Para a PGR, Bolsonaro não sabia “da absoluta ineficácia” do medicamento e acreditava sinceramente no uso da droga. Já em maio de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixava clara a inutilidade da cloroquina contra a Covid-19. Os próprios ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich avisaram Bolsonaro, por isso acabaram fora do governo. O presidente sabia exatamente o que fazia — ou não posaria para fotos mostrando caixas de cloroquina às emas do Alvorada.

Em apenas dois casos as investigações poderão prosseguir. A PGR pediu prorrogação do prazo da apuração em que Bolsonaro, integrantes do governo e aliados são acusados de incitar a população a desrespeitar medidas sanitárias, num momento em que não havia vacinas e elas eram a única forma de deter o contágio. O outro diz respeito à compra da vacina indiana Covaxin, cancelada após denúncias de fraudes. Caso avance, atingirá apenas suspeitos sem projeção, já que a PGR não viu problemas na atuação do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, acusado pela CPI de fazer pressão pela liberação da Covaxin.

Não há surpresa na manifestação da PGR. O comportamento generoso de Aras com Bolsonaro e o alto escalão do Planalto tem sido frequente no governo. A ponto de criar constrangimento. No desenrolar da CPI, o STF teve de lembrar ao Ministério Público que não lhe cabe o papel de espectador.

Para espanto da nação, Aras levou três dias para se manifestar sobre os ataques grosseiros de Bolsonaro à democracia, às urnas eletrônicas e ao sistema eleitoral no encontro descabido com embaixadores, um ato de campanha do presidente-candidato. Aras requentou um vídeo produzido antes do episódio dos diplomatas em que defendia o sistema eleitoral. Ontem, requentou outro vídeo, de uma reunião com parlamentares de oposição, para dizer que está atento ao risco de manifestações violentas no 7 de Setembro.

A PGR não pode abrir mão de seu papel de zelar pela democracia e pelo bom funcionamento das instituições. Num regime democrático, a sociedade espera das instituições respostas firmes, especialmente para momentos críticos, como é o caso da pandemia, dos ataques às urnas e das ameaças golpistas que pairam no horizonte enevoado da República. A omissão não costuma ser absolvida pela História.

É preciso ficar de olho para evitar repetição das pedaladas

O Globo

Para equilibrar contas afetadas por gasto eleitoreiro, governo quer receber dividendos antecipados das estatais

Os organismos de fiscalização e controle precisam ficar de olho nas manobras que o governo federal pôs em marcha para tentar equilibrar suas contas. Depois da distribuição de benesses a mancheias — em particular pela PEC Eleitoral —, o Ministério da Economia ordenou cortes orçamentários que ultrapassam R$ 9 bilhões e decidiu, numa repetição de práticas questionáveis do governo Dilma Rousseff, pedir às quatro maiores estatais (Petrobras, BNDES, Caixa e Banco do Brasil) a antecipação do pagamento de dividendos à União.

Em princípio, a meta de déficit primário (R$ 170,5 bilhões) não está em risco, em razão das sucessivas altas na arrecadação. A previsão é um déficit abaixo de R$ 60 bilhões, e existe até a possibilidade de que as contas públicas fechem no azul pela primeira vez em oito anos, levando em conta o resultado dos estados e municípios. Mesmo assim, a benevolência eleitoral abriu um buraco que elevou a tensão no mercado financeiro e despertou dúvidas sobre o quadro no próximo governo.

As renúncias fiscais extraordinárias passam de R$ 71 bilhões (entre elas, R$ 16,5 bilhões de desoneração dos combustíveis). A PEC Eleitoral criou gastos adicionais de R$ 41,3 bilhões neste ano. A Instituição Fiscal Independente estima que, ao todo, o impacto das medidas de afrouxamento fiscal no Orçamento deste ano seja da ordem de R$ 166 bilhões.

A PEC Eleitoral também abriu a perspectiva de que sejam necessários mais R$ 60 bilhões para o próximo governo manter o aumento de R$ 200 no Auxílio Brasil. Haverá ainda gastos adiados pela PEC dos Precatórios (saldo da ordem de R$ 150 bilhões, embora os pagamentos tenham sido limitados). Como tudo foi feito à revelia das regras que zelam pela sustentabilidade da dívida pública, a angústia dos agentes financeiros é compreensível.

A ideia de tapar o buraco antecipando dividendos das estatais não é nova. A sugestão do secretário do Tesouro, Esteves Colnago, é turbinar o caixa deste ano, sacrificando o do ano que vem. No ano passado, as receitas da União com dividendos das estatais bateram recorde, chegando a R$ 43,4 bilhões. Pelas contas apresentadas por Colnago, somando os R$ 18 bilhões obtidos com a privatização da Eletrobras a dividendos estimados em R$ 54,8 bilhões, daria para arcar com o custo da benevolência eleitoral sem criar nervosismo no mercado.

É até possível. Só é bom lembrar que, da última vez que o governo recorreu a um expediente do tipo, no governo Dilma, recursos da Caixa, do BNDES e do BB foram usados para financiar uma barbárie fiscal sem paralelo. A prática de usar o dinheiro do futuro para pagar contas do presente, popularizada como “pedalada”, configurou crime fiscal, levou ao impeachment da então presidente e fez a dívida pública explodir. Evitar que a história se repita deveria ser preocupação de todos os organismos encarregados de monitorar as finanças do governo.

FMI vê crescerem as chances de uma recessão global

Valor Econômico

Sem o fim do conflito na Ucrânia dificilmente a inflação voltará a seu curso normal sem recessão

A economia global teve sua primeira contração desde a pandemia no segundo trimestre do ano - e isso pode ser apenas o começo de uma trajetória que pode levá-la a uma recessão. Para o Fundo Monetário Internacional, tudo o que poderia dar errado está dando. “Os riscos são esmagadoramente inclinados para o lado negativo”, apontou o FMI na revisão de julho do seu Perspectiva da Economia Mundial. As chances de consolidação de um cenário recessivo se tornaram muito maiores agora.

O crescimento global deverá ser em 2022 praticamente a metade do que foi no ano passado - 3,2% ante 6,1% - e será ainda menor em 2023, de 2.9%. Os países ricos avançarão 2,5%, enquanto que os emergentes terão um desempenho um pouco melhor, de 3.6%. A China, que contribuiu durante muito tempo com a maior parte da expansão global, agora puxa a média para baixo, com expansão prevista de 3,3%, a mais baixa em décadas.

A reação dos bancos centrais à maior inflação em 40 anos nos Estados Unidos e na zona do euro, a desaceleração chinesa provocada pela estratégia do governo de covid-zero e os problemas de seu setor imobiliário, além do aperto monetário dos maiores países emergentes. retiraram o fôlego da recuperação. O fator mais imediato e relevante do declínio do crescimento, no entanto, foi a invasão da Ucrânia e, com as sanções à Rússia, o aumento generalizado e forte dos preços dos alimentos e da energia. Esse choque de preços ocorreu quando as cadeias de produção, desorganizadas pela pandemia, ainda não haviam se recomposto.

A aceleração da inflação, inesperada pela magnitude, mudou a estratégia dos bancos centrais, que passaram a aumentar mais rapidamente do que o previsto as taxas de juros. Países emergentes importantes, como o Brasil, já vinham subindo os juros desde o ano passado. “O aperto monetário resultante em muitos países”, afirma Pierre-Olivier Gourinchas, economista-chefe do FMI, “é historicamente sem precedentes”, e seus efeitos serão um crescimento menor em 2023 e a desaceleração da inflação.

O FMI não é otimista quanto ao declínio da inflação, logo quanto à reversão da política de aperto nos juros, que deverá ser mais prolongado do que se imaginava. Embora os indicadores de mercado apontem que os BCs começarão a reduzir as taxas já no ano que vem, os cálculos do FMI indicam, no entanto, que a inflação cheia ainda estará acima de 4% no último trimestre de 2023 e o núcleo de inflação, pouco abaixo de 4%. Tanto a inflação como os juros, dessa forma, não arrefecerão logo.

As três principais economias do mundo estão desacelerando. A China reduzirá seu crescimento a 3,3% este ano e 4,6% em 2023, ambos distantes da meta do PC chinês de obter expansão de 5,5% este ano. No segundo trimestre, o PIB chinês encolheu 2,6%, a maior queda desde o primeiro trimestre de 2020, e a covid-19 pode provocar ainda mais estragos, como ocorreu em Xangai.

Novos focos de preocupação surgiram no fim de semana no centro industrial de Shenzen, objeto de medidas de contenção drásticas usuais. O setor imobiliário, um dos motores da expansão chinesa, continua avariado, enquanto Pequim anuncia estímulos para que pelo menos a grande quantidade de imóveis não concluída seja finalizada.

A economia americana, a maior do mundo, perde fôlego rapidamente. A previsão do Fundo é que o crescimento será de 2,3% este ano e apenas 1% no próximo. No último trimestre de 2023, comparado ao último de 2022, a expansão será de apenas 0,6%, “e não será preciso muito para jogar a economia no que se chama de recessão técnica”, afirmou Gourinchas. A zona do euro, por seu lado, foi atingida em cheio pela redução das exportações russas de gás e óleo. O bloco crescerá 2,6% em 2022 e 1,2% em 2023.

O aperto das condições financeiras pode causar novas crises de dívidas em países emergentes e em desenvolvimento. Segundo o FMI, mais de 40% das emissões destes países pagam agora rendimentos superiores a 10%.

Há mais riscos a caminho. No cenário alternativo do FMI, a virtual cessação do fornecimento do gás russo levaria o crescimento na zona do euro e nos EUA a zero.

Sem o fim do conflito na Ucrânia dificilmente a inflação voltará a seu curso normal sem recessão. Com índices de 9,1% nos EUA e 8,6% na zona do euro, estratégias gradualistas têm baixas chances de sucesso. O isolamento da Rússia, grande fornecedor de petróleo e gás, em um momento difícil de transição energética, traz enorme complicador adicional, que não pode ser resolvido por políticas monetárias.

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