O Globo
Autorização a ozonioterapia não é amparada
por explicação técnica ou política e serve apenas para atiçar opositores de
Lula
A decisão do presidente Lula de sancionar
uma lei que autoriza o emprego de ozonioterapia no Brasil, a despeito de não
haver nenhuma comprovação científica de sua eficácia e, pelo contrário, de
existirem muitas evidências de que ela pode ser maléfica, parece se amparar no
adendo de que seu uso será “apenas complementar”.
É como se essa expressão marota redimisse Lula e o governo de chancelar o mais acabado negacionismo — que, se já não fosse indefensável do ponto de vista científico, se mostra um desastre sob o aspecto político, uma vez que foi justamente a ozonioterapia uma das mandracarias vendidas pelo bolsonarismo no auge da pandemia de Covid-19, num discurso que negava a eficácia de vacinas, máscaras e distanciamento social na outra ponta.
Para quê? Baseado em quê? Para agradar a
quem? Ninguém do entorno do presidente com quem se converse sabe explicar. Na
comunidade científica, que comeu o pão com cloroquina que o diabo amassou nos
anos Bolsonaro, nota-se certa decepção, seguida por um prurido também bastante
discutível de questionar de forma mais enfática a decisão do presidente.
Assim como setores das ciências humanas, do
jornalismo, do Direito e da cultura, também entre os cientistas parece grassar
certa superstição de que qualquer crítica ao governo que já vai pelo seu oitavo
mês significaria alguma dose de condescendência com o que o país viveu sob o
jugo de Bolsonaro. Ou, num raciocínio semelhante, que criticar Lula pode
impulsionar a volta da direita. Tais argumentos são não apenas desonestos
intelectualmente, como têm o condão de, no limite, interditar qualquer debate
sobre os rumos do governo, o que não pode dar em boa coisa.
Ao assinar a lei da ozonioterapia, Lula
contribuiu para enfraquecer ainda mais a ministra da Saúde, Nísia Trindade,
cuja cadeira está na mira do PP de Arthur Lira. Depois de dizer que a ministra
fica, Lula só tomou atitudes para desautorizá-la, da discussão sobre a volta da
Funasa até essa desastrosa decisão de permitir uma terapia que não tem nada de
eficaz.
São muitas as deficiências do SUS que
deveriam ser prioridade do governo eleito para reerguer o sistema, e nenhuma
delas passa pela injeção de ozônio no corpo dos pacientes. Para ficar só no
tratamento de câncer, uma das áreas em que os charlatães vendem as maravilhas
da terapia agora aceita em caráter “complementar”, faltam aparelhos para
radioterapia na maior parte dos hospitais, e o diagnóstico tardio para quem não
tem acesso a bons planos de saúde é uma sentença de condenação a ter mais
chances de morrer.
Sim, a permissão “complementar”, água com
açúcar, do ozônio não implicará gasto público. Mas a diretriz de política
pública precisa ser coerente, e um governo que vem em substituição a outro de
viés obscurantista não tem o direito de ser um pouquinho negacionista só porque
os pacientes serão avisados de que aquela terapia é de cunho acessório, não é
para valer.
O debate público está de tal maneira
desvirtuado no Brasil que, enquanto à esquerda havia um luto silencioso com a
sanção da lei por Lula, na direita, que até outro dia passava pano para mais de
700 mil mortes na pandemia, havia quase comemoração de Copa do Mundo pela
decisão que aproximaria o petista do clube dos que desprezam a ciência. De lado
a lado, às favas os escrúpulos ou a saúde, o que importa é reforçar na
sociedade a odienta polarização.
Em meio à absoluta falta de compromisso com
a boa evidência científica, que obrigaria Lula a vetar essa bobajada, fica a
população, já iludida pelos “milagres” do ozônio no rejuvenescimento e sabe-se
mais lá em que outras tantas finalidades. Mas olha: é só em caráter
complementar, viu, pessoal?
Um comentário:
Onde já se viu!
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