quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Zeina Latif - Precisamos fortalecer o foco do Estado no cidadão

O Globo

É necessário um funcionalismo preparado, e um conjunto de regras que provejam flexibilidade à administração pública

A qualidade da burocracia estatal é um ingrediente essencial para o sucesso da ação do Estado, podendo se traduzir em maior crescimento econômico dos países, havendo evidência empírica nessa direção*.

Os alicerces são a meritocracia no recrutamento e no progresso na carreira, com utilização de incentivos corretos, e o devido accountability (monitoramento, prestação de contas e responsabilização). É necessário englobar desde os formuladores de diretrizes de políticas públicas até os servidores que atendem diretamente o cidadão.

Esse desafio não é exclusividade do Brasil, mas aqui o quadro é bastante complexo em função da combinação de fatores como: estabilidade plena dos servidores (e não apenas para carreiras de Estado), aspecto em que o Brasil destoa da experiência mundial; regras que fortalecem o corporativismo; e marco jurídico falho, que constrange o processo decisório (“apagão da caneta”).

Soma-se a isso a grande concessão de cargos como moeda de troca nas barganhas políticas, para se obter apoio do Congresso. Talvez por isso o Legislativo falhe tanto no controle do uso dos recursos públicos pelo Executivo.

O resultado é nossa posição medíocre nos rankings de efetividade do governo. O do Banco Mundial busca captar as percepções acerca da qualidade do serviço público, sua independência, a formulação e implementação de políticas públicas, e o compromisso do governo com as políticas. Em 2021, apenas 35% dos países tinham posição inferior à do Brasil no ranking, ante 71,2% do Chile.

Reformas são necessárias para construir um modelo administrativo mais focado no cidadão e não nos interesses de diferentes segmentos da burocracia.

O objetivo principal da reforma administrativa deve ser melhorar a qualidade da ação estatal, mas ela poderá resultar em economia de recursos ao longo do tempo, como na revisão das regras de remuneração e progressão na carreira.

O maior problema atual não é o inchaço da máquina — em algumas áreas faltam quadros —, mas a elevada remuneração em relação aos pares no setor privado. Mais uma vez, esse fenômeno não é uma peculiaridade brasileira, mas o país apresenta um diferencial de remuneração bastante superior ao dos países da OCDE, especialmente na esfera federal — 67% ante 14% na OCDE, segundo o Banco Mundial. E a Previdência é ainda generosa, apesar das reformas conduzidas.

O funcionalismo está longe de ser um grupo homogêneo. A desigualdade no setor público é superior à observada na iniciativa privada. A fatia dos 10% mais bem pagos concentra as carreiras judiciárias, que estão sempre a buscar mais “penduricalhos”.

Outra dificuldade são as muitas nomeações políticas sem compromisso ou identificação com a missão do cargo, o que contamina toda a cadeia da gestão pública. Vale citar um grave problema na área da educação, que é a indicação política para diretores de escola, como aponta o relatório do D3e, Todos Pela Educação e Atricon.

Esses elementos, além de prejudicarem a eficiência da máquina, alimentam o corporativismo.

A julgar pelo passado, a reforma administrativa seria ainda mais necessária na gestão petista. É verdade que a reforma da Previdência dos servidores foi uma inflexão em relação às posições do PT na oposição, que atuou para afastar iniciativas de FHC, como a estabilidade condicionada a avaliações de desempenho, a flexibilização do regime único e a regulamentação do direito de greve.

Porém, houve expansão da folha, loteamento da máquina, aumento injustificado de gratificações e sua extensão aos inativos. Pior, faltou, e muito, a autocontenção do Executivo, como na gestão ideológica do Ipea, no enfraquecimento da autonomia de agências reguladoras, e nas contabilidades criativas e pedaladas.

O modelo atual não se provou um antídoto para os excessos dos políticos, ou mesmo suas omissões, como na pandemia. É necessário um funcionalismo preparado e engajado, e um conjunto de regras que provejam flexibilidade à administração pública, com vistas a ajustar as políticas públicas às demandas da sociedade.

Que se aprofunde essa discussão. A agenda é extensa, para mais de um governo, e exige liderança forte. Não é uma agenda que agrada ao PT. É bem-vinda, pois, a cobrança do Congresso.

*Um exemplo é EVANS, Peter; RAUCH, James E. “Bureaucracy and Growth: A Cross-National Analysis of the Effects of ‘Weberian’ State Structures on Economic Growth”. American Sociological Review, 1999

 

Um comentário:

ADEMAR AMANCIO disse...

Muito boa a coluna.