Folha de S. Paulo
Governador ilustrou o sentimento do Norte e
Nordeste de que só Lula os defende
Se Romeu Zema queria puxar a brasa para a
sardinha de Lula e colocar mais obstáculos eleitorais no caminho da direita,
além de projetar uma luz ruim sobre o consórcio de estados do Sul e do Sudeste,
foi muito exitoso na entrevista que deu a Monica Gugliano e Andreza Matais,
de O Estado de S. Paulo.
O curioso da história é que ele se vende
como um sujeito que reconhece que ser eficaz na gestão e na articulação
política pode não bastar sem uma estratégia de comunicação bem planejada e
muito bem executada. Chega a exagerar na ponderação entre entregas políticas e
comunicação no cálculo do sucesso eleitoral, como quando diz que Bolsonaro teve
a eleição passada "totalmente na mão", tendo-a perdido apenas no
discurso, na retórica, na polêmica. O governo Bolsonaro teria sido bom, nota 8,
mas uma comunicação presidencial ruim pôs tudo a perder.
Do mesmo modo, o seu juízo acerca da esquerda é sobre um fracasso no desenvolvimento, compensado por retumbante sucesso na propaganda. Na prática, a esquerda nada tem, segundo ele, mas na comunicação ela rouba a admiração do governador, que não poupa expressões como "canto da sereia", "discurso sedutor" e "lavagem mental".
Se entendesse mesmo de comunicação
estratégica, o governador de Minas talvez devesse ter sido mais, digamos,
"mineiro", isto é, mais conforme o clichê do político que diz menos
do que pensa, considera cautelosamente o efeito das suas palavras e, sobretudo,
cultiva uma estudada modéstia e moderação.
Se tivesse ponderado melhor, talvez tivesse
compreendido que a sentença "já decidimos que além do protagonismo
econômico, que temos, nós queremos o protagonismo político", em que
contrapõe o Sul/Sudeste ao Norte/Nordeste, é um presente dos sonhos para Lula.
Com essa frase, Zema forneceu a ilustração desejada para o sentimento
nordestino, nortista e dos pobres do país de que só Lula os defende, só ele tem
de fato uma agenda para a diminuição da desigualdade regional e que só Lula e a
esquerda fizeram uma opção preferencial pelos pobres.
"Além do protagonismo econômico,
queremos o protagonismo político" é como expedir um atestado de que
políticos como Zema só pensam nos que estão por cima e em aumentar o poder dos
que já o têm. Nos ouvidos dos afetados pela desigualdade, o duplo protagonismo
reivindicado por Zema é só uma versão pomposa do refrão mais sincero de Igor
Kannário: "É nós, depois de nós é nós de novo".
Não imagino Tancredo Neves sintetizando e
simplificando o Norte e o Nordeste brasileiros na noção de "vaquinhas
pouco produtivas". Mas Romeu Zema o fez. Uma contribuição monumental para
reforçar a convicção, na maior parte do país, de que que "esses políticos
lá de baixo" conhecem o resto do Brasil não pelos livros de história, mas
pelas histórias que lhes contam seus preconceitos e clichês, sua ignorância e
sua incapacidade de entender e reconhecer as gigantescas diferenças internas
das outras regiões.
Depois se esforçam tanto para entender a
teimosia do Nordeste, que não se rendeu ao antipetismo nem ao bolsonarismo
quando a maior parte da população do país fez uma virada eleitoral à direita
populista. Transformaram em enigma o que é claro feito o dia. Há de haver
várias razões para que a região tenha resistido, mas certamente é preciso
considerar como variável importante a sensação altamente disseminada de que o
sentimento antinordestino era parte fundamental do antipetismo.
Pensem comigo: qual a racionalidade de
mudar eleitoralmente para um governo de duas faces, liberal-darwinista e
ultraconservador, como o oferecido pelo antipetismo, ante a alternativa petista
do reconhecimento do problema da desigualdade regional como uma questão central
para o país, além de considerar as especificidades do Norte e do Nordeste? Pelo
menos o PT sempre soube que havia mais Brasil a partir do vale do Jequitinhonha
e ao norte de Campos, enquanto o discurso dominante vê apenas vaquinhas pouco
produtivas, um desperdício de pasto e ração.
Quando as pessoas desconfiam que convicções
como as candidamente vocalizadas por Zema —de que a desigualdade regional é um
problema dos que ficaram para trás, não de todo o país; de que a pobreza é um
problema dos pobres, não um problema nacional— são as ideias que movem os
outros projetos de poder político, cessa o enigma do voto nordestino e nortista
das últimas eleições.
Houve racionalidade quando se considerou
que, sem Lula, quem já é protagonista de tudo quer ainda se tornar protagonista
do resto. Zema está aí para ajudar os eleitores a se lembrar disso. Foi um belo
serviço prestado.
*Professor titular da UFBA (Universidade
Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"
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