Não acredito que a Cúpula das Américas tenha ficado sem um texto final só porque
Estados Unidos e Canadá não endossaram a posição, majoritária no continente,
sobre a integração de Cuba e a pretensão argentina às Ilhas Malvinas. Afinal, o
único país que se importa com as ilhas geladas é a própria Argentina; quanto à
ilha tropical, faz tempo que Cuba deixou de ter peso na política do mundo.
Hoje, só lhe resta o papel simbólico. Terá servido, se tanto, de pretexto para
a maioria manifestar sua irritação com o descaso de Washington por agendas mais
substanciais, e para os americanos agradarem aos cubanos da Flórida. Se a
reunião prometesse algo importante, a bola não teria sido jogada para
escanteio.
Mas por que Cuba perdeu o relevo político que foi seu, na época em que
vencia os sul-africanos em Angola e Fidel tentava mediar o conflito da Somália
com a Etiópia, ambas "socialistas" (assim, entre aspas)? E para onde
se orienta esse país? Porque, hoje, a única importância que lhe resta é a que
lhe dão os Estados Unidos.
Em outubro, fará meio século a crise dos mísseis, que quase levou à guerra
nuclear, por conta de foguetes soviéticos com ogivas nucleares em Cuba. Por
duas semanas, o futuro do planeta esteve por um fio. Hoje, essa cena parece
impossível. Atualmente, conflitos locais permanecem locais. Um atirador louco
em Sarajevo não enlouquecerá o mundo. Um assassínio localizado não causará
dezenas de milhões de mortes. Melhoramos.
Cuba aceitou o capital, desde que sem burguesia
Mas o que fazer em Cuba e com Cuba? Vale a pena pensar a respeito.
Primeiro, em algum momento acabará o bloqueio. Os Estados Unidos, que não
perdoam o momento em que a ilha foi um Davi heroico contra o Golias mau do
imperialismo, esperam a saída dos irmãos Castro. Talvez queiram ver humilhado o
regime cubano. Mas percebem que, enquanto isso, Cuba abre espaço econômico para
o capital europeu. Se os americanos demorarem, Cuba continuará sendo - para
eles - só uma foto velha na parede. Talvez doa.
Segundo, a restauração do capitalismo parece uma questão de tempo. Em que
dimensão, resta discutir. Há vários roteiros possíveis. A depender de Fidel,
pouco acontece. O problema não é o capital externo, que ele aceitou - mas a
formação de uma burguesia cubana. Para ele, uma burguesia local significaria o
fim da pureza ética e a legitimação da ganância. Essa é a questão crucial. Como
as coisas escapam gradualmente de Fidel, creio que Raúl prefira um cenário
chinês "com rosto humano". Manteria o poder político e policial no
partido, abriria o capitalismo, inclusive nativo, tentando conter seu instinto
animal - e o rosto humano estaria numa rede de proteção social maior que a
chinesa. Sem isso, de nada terá valido enfrentar Golias. Mas como conter uma
burguesia cubana dinâmica?
Outra via pode estar na restauração do capitalismo, somada à queda do PC.
Contudo, embora essa opção possa agradar a Washington, traz problemas. Talvez
eu leve a sério o belo romance policial (anticomunista) de Roberto Ampuero,
"Falcões da noite", em que a CIA impede um atentado contra Fidel.
Porque uma instabilidade aguda numa ilha tão perto da Flórida seria um desastre
para os Estados Unidos. Eles estariam para Cuba como a Alemanha Ocidental para
a Oriental, após a queda do muro: um lugar rico, onde todos têm o direito legal
de ir morar. Ampuero imagina 1 milhão de cubanos fugindo para Miami em dias,
com muitos morrendo no mar e outros sobrecarregando a população do Estado.
Os americanos têm interesse numa transição controlada. Mas controlada por
quem, se não for pelo regime cubano? A questão cubana está cheia de quadraturas
do círculo... O discurso público do governo americano, contrário a qualquer
concessão a Havana, não expressa exatamente o que seus dirigentes pensam.
Washington prefere que nenhum Castro esteja presente, mas seu pior receio é um milhão
ou mais de latinos invadindo seu território.
E a diáspora cubana? Ela e a comunidade judaica controlam segmentos
importantes da política externa americana. Quando Clinton mandou devolver ao
pai o menino cubano que foi parar em Miami, sacrificou sua sucessão (houve,
também, a fraude eleitoral). A diáspora cubana torna o governo americano refém
de seus interesses particulares. Mas será bom a diáspora aumentar o diálogo com
Havana. Isso funcionará melhor no pós-Castro, mas também é uma condição para a
própria transição. Precisa haver negociações tanto da diáspora quanto de
Washington com Havana, para evitar a perda de controle. O pior para os
americanos seria uma guerra civil cubana ou a debandada para o Norte. Pode ser
que já estejam conversando; mas sempre fica a questão de quem pisca primeiro.
Um dia alguém da nomenklatura dirá, como disse nosso ditador Figueiredo
sobre os exilados brasileiros, que "lugar de cubano é em Cuba". Esse
é um direito essencial dos exilados e seus descendentes. Mas restará negociar
quantos, dos cubanos de Miami, poderão e quererão residir e votar na ilha. O
regime aprendeu com a queda das ditaduras comunistas na Europa Oriental, mais
de 20 anos atrás, e fará tudo para evitar uma reprise desse cenário. Isso
inclui evitar que o dinheiro da Flórida compre as primeiras eleições que forem
livres - mas também incluirá retirar do Partido e dos Comitês de Defesa da
Revolução os próprios públicos que eles possuem e utilizam. Enfim, há
parâmetros. O governo comunista pode desabar, o capitalismo voltar, Miami
vencer as eleições. Ou o regime pode se abrir, controlando o capital. Entre os
extremos, muito pode ser negociado. Quanto mais cedo, melhor.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na
Universidade de São Paulo.
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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