“Infelizmente,
vivenciamos tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos
descalabros que, envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira
- composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta - um misto de revolta,
desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas as mentiras, tão
grosseiras as justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se
pode cogitar somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético
que parece dividir o País em dois segmentos estanques - o da corrupção,
seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e
o da grande massa comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para
sobreviver e progredir.
Não há, nessas afirmações
- que lamento ter de lançar -, exagero algum de retórica. Não passa dia sem
depararmos com manchete de escândalos. Tornou-se quase banal a notícia de
indiciamento de autoridades dos diversos escalões não só por um crime, mas por
vários, incluindo o de formação de quadrilha, como por último consignado em
denúncia do Procurador-Geral da República, Doutor Antônio Fernando Barros e
Silva de Souza. A rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites,
levando os já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais
surpreendente, como se tudo fosse muito natural e devesse ser assim mesmo; como
se todos os homens públicos, nas mais diferentes épocas, fossem e tivessem sido
igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro
passado justificasse os erros presentes.
A repulsa dos que sabem o
valor do trabalho árduo se transformou em indiferença e desdém, como acontece
quando, por vergonha, alguém desiste de torcer pelo time do coração e resolve
ignorar essa parte do cotidiano. É a tática do avestruz: enterrar a cabeça para
deixar o vendaval passar. E seguimos como se nada estivesse acontecendo.
Perplexos, percebemos, na simples comparação entre o discurso oficial e as
notícias jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do faz-de-conta. Faz de
conta que não se produziu o maior dos escândalos nacionais, que os culpados
nada sabiam - o que lhes daria uma carta de alforria prévia para continuar
agindo como se nada de mal houvessem feito. Faz de conta que não foram usadas
as mais descaradas falcatruas para desviar milhões de reais, num prejuízo
irreversível em país de tantos miseráveis. Faz de conta que tais tipos de
abusos não continuam se reproduzindo à plena luz, num desafio cínico à
supremacia da lei, cuja observação é tão necessária em momentos conturbados.”
Marco Aurélio de Mello,
ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), no discurso de posse na presidência
do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2006.
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