A trajetória mais que centenária da República brasileira é acidentada. Para
a nação conseguir completar 27 anos ininterruptos de estabilidade
institucional, feito inédito na Era republicana, ela cumpriu tumultuado
percurso de crises, com dois longos períodos de trevas - no Estado Novo
varguista e na ditadura dos militares, da qual o país saiu unido em torno de um
projeto de redemocratização, em que se lançou sem violência, inclusive com a
adesão de políticos do antigo regime.
Desde 1985, quando a posse de um presidente civil (Sarney) serviu, e serve,
de registro do fim do ciclo militar autoritário, as instituições da democracia
representativa têm amadurecido e se consolidado, essencial para o
desenvolvimento econômico - impossível num quadro de insegurança jurídica - e,
por decorrência, o aprimoramento social.
O desfecho do julgamento do mensalão entra para a História como um dos
pontos altos neste processo de amadurecimento do regime, e torna o Brasil um
exemplo ainda mais positivo numa região intoxicada pelo antigo e pernicioso
vírus do nacional-populismo latino-americano, em nome do qual fundam-se regimes
autoritários pela via de mecanismos apenas na superfície democráticos. Sempre
em nome da "justiça social".
Ao condenar por corrupção passiva e formação de quadrilha a cúpula do PT da
época da primeira campanha vitoriosa de Lula, em 2002, e da primeira parte do
seu governo até a eclosão do escândalo, em 2005, o Supremo Tribunal Federal
(STF) reafirmou de forma enfática a separação entre os Poderes e a
independência do Poder Judiciário, questão pétrea em qualquer democracia que
mereça ser chamada pelo nome.
Quando um dos beneficiários do mensalão, o ainda deputado Roberto Jefferson
(PTB-RJ), sentindo-se acuado em lutas internas na base do governo, resolveu
denunciar o esquema, ninguém poderia antever que José Dirceu, ministro-chefe da
Casa Civil, José Genoíno e Delúbio Soares, presidente e tesoureiro do PT,
iriam, algum dia, ser punidos na Justiça.
A quase certeza da impunidade que costuma acompanhar os poderosos no Brasil
deve ter animado a direção dos bancos Rural e BMG a participar da fraude
financeira dos empréstimos forjados para lavar o dinheiro do mensalão
surrupiado dos cofres públicos (BB/Visanet e Câmara dos Deputados).
A tendência do Brasil tem sido de avanços. A renovação da classe política
não é a ideal, em velocidade e qualidade, mas não se deve esquecer que o país
das tentativas de tomadas do poder pela força, duas delas bem-sucedidas, cassou
no Congresso o mandato do primeiro presidente eleito pelo voto direto depois do
apagão da ditadura militar, sem nada de anormal acontecer nas ruas - e nos
quartéis.
Em certa medida, a condenação de petistas, aliados e sócios no valerioduto
pelo Supremo repete o feito do Congresso em 1993. Logo nas primeiras
condenações do julgamento, o "New York Times", ao divulgar a notícia,
acrescentou que o fato renovava as esperanças dos brasileiros na possibilidade
de poderosos serem punidos por corrupção, mercadoria rara na vida pública
nacional. Aconteceu no impeachment de Collor e agora no mensalão. Desta vez,
porém, o alcance político chega até a ser mais amplo, com a fixação de limites
nítidos para o trânsito dos poderosos de ocasião na vida pública.
O procurador-geral da República Cláudio Fonteles construiu sólida denúncia
contra os mensaleiros, tachou a cúpula do esquema de "organização
criminosa" e teve êxito, em 2007, ao pedir a instauração do processo pelo
STF. Cinco anos depois, já com a denúncia sendo defendida pelo sucessor de
Fonteles, Roberto Gurgel, a "organização criminosa" e boa parte de
seus beneficiários foram condenadas, com José Dirceu à frente, considerado por
Fonteles o "chefe da organização".
Toda a tramitação do caso tem sido exemplar. O MP, com base em depoimentos
perante CPIs, investigações e perícias policiais, encaminhou denúncia
consistente. O relator, ministro Joaquim Barbosa, executou trabalho minucioso
de tomada de depoimentos pelas justiças regionais e no encaminhamento dos seus
votos ao restante do Pleno. O mesmo aconteceu com o outro polo do julgamento,
Ricardo Lewandowski, revisor do processo. Só a má-fé leva alguém a enxergar
algum viés político nas condenações por um Pleno composto em sua maioria por
ministros indicados nos governos petistas de Lula e Dilma - mais um fator de
enobrecimento da atuação da Corte.
Concluída a avaliação do mérito, na segunda-feira, na 39ª sessão do
julgamento, o Supremo deixa um acervo de discussões e definições técnicas
importantes sobre os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro, formação de
quadrilha de "colarinhos brancos", por exemplo, para balizar as
instâncias inferiores da Justiça com uma jurisprudência mais adequada a um tipo
de delinquência cometida em gabinetes fechados, quase sempre sem provas
materiais, mas nem assim pouco ofensiva para a sociedade.
Advogados de defesa foram surpreendidos por uma interpretação de
instrumentos já existentes na legislação penal que levou a maioria dos
ministros a considerar como elementos fortes de convicção para condenações
indícios e provas testemunhais mesmo não colhidas perante juízes. Houve, ainda,
a aplicação do conceito do "domínio do fato" , pelo qual alguém pode
ser condenado sem provas materiais, mas por ter coordenado a execução do crime.
Afinal, chefes de esquemas de corrupção em altas esferas costumam não deixar
rastros.
As inúmeras intervenções dos ministros nos debates profundos que travaram
provam que vários deles entenderam muito bem do que se tratava o mensalão. Não
foi um caso comum de corrupção. O presidente da Corte, ministro Ayres Britto,
em uma das sessões, qualificou: tratava-se de "(...) um projeto de poder
quadrienalmente quadruplicado. Projeto de poder de continuísmo seco, raso.
Golpe, portanto".
Como não qualificar como "golpe" o desvio de dinheiro público - e
que fosse privado - para cooptar pecuniariamente legendas menores, a fim de dar
sustentação perene ao grupo no poder? Celso de Mello, decano da Corte, um dos
que aceitaram a denúncia de "formação de quadrilha", considerou o
grupo do mensalão uma "sociedade de delinquentes", formada para
mudar, por baixo do pano, o sentido do voto dos eleitores, adulterar a
representação política, num projeto de eternização no poder. O mensalão visou a
abalar, nas palavras de Joaquim Barbosa, "as bases do sistema
democrático".
O Supremo, ao condenar mensaleiros, estabeleceu forte linha de defesa do
estado democrático de direito. Não será por falta de balizamento jurídico que
os homens públicos em geral deixarão de exercitar a política como deve ser.
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