O Brasil só exerce
liderança com seus vizinhos cedendo. Esta é, em síntese, a opinião do
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso sobre as relações do Brasil na América
do Sul. Em entrevista ao Valor, ele disse que o país deixou de ser o ator mais
influente da região, que vive um momento de fragmentação, com a criação de um
terceiro bloco de países, a Aliança do Pacífico.
Essa opinião contrasta
com a imagem de "global player" que o Brasil passou a ter na
comunidade internacional durante o mandato de Luiz Inácio Lula da Silva.
"Houve muita retórica. Quando você é "global player", não tem
que bater tanto no peito dizendo que é", afirmou FHC.
"Perdemos nossa
relevância política no continente"
Cristian Klein
Fernando Henrique Cardoso: "Nosso modo de exercer liderança tem sido
concordar, não tem sido dizer "não, isso não""
SÃO PAULO - O Brasil só exerce liderança com seus vizinhos cedendo. E deixou
de ser o ator mais influente na América do Sul, que vive um momento de
fragmentação, com a criação de um terceiro novo bloco por países da região, a
Aliança do Pacífico. A opinião do ex-presidente da República Fernando Henrique
Cardoso contrasta com a imagem de um Brasil que passou a ser um global player e
ganhou relevância na comunidade internacional, durante o mandato de seu
sucessor, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Houve muita
retórica. Quando você é global player não tem que bater tanto no peito dizendo
que é", afirma FHC.
Fernando Henrique reconhece que o país ganhou peso, mas isso não implicou em
aumento na capacidade de liderança. Entre as razões está a dificuldade, de
vários atores - Estado, empresariado, sociedade civil organizada - em discutir
uma maior liberalização da economia e se aproximar dos Estados Unidos. A
seguir, os principais trechos da entrevista que FHC concedeu ao Valor, depois
de participar do seminário "A liderança do Brasil na América do Sul":
Valor: O Brasil erra ao privilegiar as relações Sul-Sul em sua política
externa?
Fernando Henrique Cardoso: Não é equívoco, tem que haver a Sul-Sul, o
problema é acentuar exclusivamente. O Brasil é um grande país. É do interesse nacional
ter uma diversificação nas suas relações econômicas e políticas. Agora, se
concentrar em um dos polos, complica. Tem que ter um certo equilíbrio. O
Brasil, além do mais, é industrializado. Não há nenhum outro país ao Sul do
Equador com a base industrial igual à nossa. Isso implica que temos que ter um
vínculo com a invenção e a criatividade tecnológica, o que nos leva
necessariamente a ter relação com os produtores disso: Alemanha, Estados
Unidos, mais tarde China, não podemos nos isolar desse fluxo de inovação.
Valor: E quais seriam as consequências da concentração no polo Sul-Sul?
FHC: Um certo descaso com o mundo, com os Estados Unidos, com a Europa. A
nossa produção industrial manufatureira basicamente vai para a América Latina e
para os Estados Unidos. Não vai para China, não vai para Europa. Agora, vai
também para os países árabes, isso é uma coisa importante. O [Jorge] Gerdau
colocou aí: no limite, ele perguntou: será que não precisamos de uma integração
mais ampla, mais global? No fundo é o seguinte: será que o Chile quando tomou a
decisão de uma integração global - que parecia, para nós brasileiros, uma coisa
arriscada e sem efeito - não teria se antecipado àquilo que todos vão ter que
fazer se quiserem estar à tona? Claro o Brasil é diferente. O Chile não tem a
vantagem nem o peso de ter uma indústria grande. Nós temos mais complicações
para fazer aberturas. Agora, será que, dado nosso grau de avanço, nós já não
temos condições de realmente liberalizar mais? E ganhar com isso, pelas nossas vantagens
competitivas? Aí vem outra pergunta: para isso não podemos continuar do jeito
que estamos, pois nosso setor industrial está perdendo relativo espaço pela
produtividade, e produtividade entendida como custo Brasil. Para o Brasil poder
dar um passo maior na sua integração à economia global, ele precisa fazer mais
reformas, ou não vale a pena, não tem condição de competir.
Valor: Quais são as reformas necessárias?
FHC: As que todo mundo fala, acho que a Gerdau resumiu bem. Em primeiro
lugar é educação; em segundo é logística; em terceiro lugar é investir
pesadamente em infraestrutura. Logística é parte da infraestrutura, mas prefiro
citar como infraestrutura energética e tudo mais. Temos condições para tudo
isso.
Valor: Destinar todos os recursos dos royalties do pré-sal para a educação,
como defende hoje o governo federal, é uma boa saída?
FHC: Aí eu tenho uma posição um pouco divergente. Em desespero de causa,
melhor que seja para a educação do que deixar indiscriminado, porque daí vai
para gastos correntes. Eu acho que deveria ser uma parcela para educação. É
muito dinheiro, você imagina... E educação não se resolve só com dinheiro; é
com outras coisas mais. Quando tem muito dinheiro você pode pensar que resolveu
o problema da educação; não vai, isso pode aumentar gastos correntes também.
Como é que eu vou melhorar qualitativamente a educação e não simplesmente
construir mais prédios? Agora, sem dúvida, é melhor que tenha gastos também com
educação do que não ter limitação nenhuma de gasto, como ficou o projeto. O
projeto como foi aprovado pelo Congresso foi o pior possível. Divide entre
todos [Estados, União e municípios] e não dá restrição nenhuma.
Valor: Para que outras áreas poderiam ir os recursos?
FHC: Infraestrutura. Qual era a ideia da partilha? Era o modelo norueguês,
que retira da circulação o lucro do petróleo, você o põe fora, porque o
petróleo é um bem que se esgota, e tem que pensar nas gerações futuras. Esse
foi o pretexto para fazer a partilha. Esqueceram disso. Uma parte do lucro tem
que ser mesmo para um fundo soberano, pensando em duas coisas: gerações futuras
e crise, amortecedor de problemas. A outra parte acho que seria razoável que se
usasse em educação, inovação tecnológica e infraestrutura.
Valor: O senhor falou que o Brasil não é o Chile e que a dificuldade de
mudança aqui se deve à indústria. Qual é o peso dos principais atores, como
empresários e trabalhadores, nessa equação?
FHC: É grande, a dificuldade toda aí é que você tem que definir o interesse
nacional, o interesse do Estado e do povo. Os empresários, claro, têm a
legitimidade de puxar o quinhão para eles, mas a decisão não pode ser
automaticamente para favorecê-los. Acho até que o governo atual está
automaticamente favorecendo os empresários com as políticas do BNDES, com
transferência de renda pesada em setores que não necessitam. Se você pegar
fundo de petróleo para fazer isso, acho errado. Agora por outro lado, se você
pegar isso e transformar tudo em gasto corrente, vai para o outro lado. É
defender os interesses corporativos, de funcionários, sindicatos. Este, no
Brasil, é um processo histórico, pesado, difícil. Reli o livro ["Os donos
do poder", de 1958] do [Raimundo] Faoro, porque eu tinha que escrever um
trabalho. É impressionante como ele já descreve todos esses processos. É claro
que o peso do mercado hoje é maior do que ele imaginava ser possível. Mas de
qualquer maneira ainda está muito presente a tradição corporativa, estamental.
O estamento se choca com o interesse público.
Valor: E o que o senhor hoje faria diferente do que fez para a integração
econômica do Brasil?
FHC: A nossa integração era basicamente o Mercosul, que estava baseada em
fazer o seguinte: tarifa externa comum e intensificar o comércio - defesa comum
e exportação dentro do bloco. Mas em vez de resultar numa efetiva
liberalização, pelos direitos constituídos o que gerou foi um incremento das
exceções, para manter o protecionismo, às vezes do Brasil e na maior parte das
vezes da Argentina. Então isso levou, como leva atualmente, a choques grandes.
Estava vendo ainda ontem um economista dizer que a queda do PIB do Brasil -
porcentagem ridícula - se deve em grande parte à queda da exportação para
Argentina. Então, fazer uma integração que nos leve a isso não foi bom
resultado. Eu havia percebido isso e propus uma coisa que eles chamavam de
Iirsa [Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana],
que era uma outra coisa, independentemente de termos o Mercosul. Era fazer uma
integração latino-americana baseada na logística, na integração dos eixos de
energia, transporte, comunicações. Começou-se a fazer isso, mas virou Alba
[Aliança Bolivariana para as Américas, formada por Venezuela, Bolívia, Equador,
entre outros]. Virou muito mais uma retórica - embora tenha resultados
concretos também. Acho que eu daria mais ênfase à Iirsa do que ao comércio, a
investimentos conjuntos - nesses grandes blocos logísticos que permitissem a
integração.
Valor: O que mais?
FHC: Nunca chegamos a discutir de verdade a Alca [Área de Livre Comércio das
Américas], quando os americanos tinham interesse. Depois eles perderam o
interesse, junto com o governo brasileiro, e fizeram acordos bilaterais com
vários países aqui da América Latina. Nunca chegamos a pensar a fundo uma
negociação com os Estados Unidos, sempre tivemos medo. Esse nós somos nós
todos. O setor político por ideologia, muitas vezes; o setor empresarial por
medo da competição; e o governo por ficar sem ter muita clareza, qual era o
interesse do Brasil. Cozinhamos a Alca em banho-maria. Apesar de toda a
gritaria que havia, nunca fizemos nada, não demos nenhum passo para fortalecer
a Alca. Me pergunto: será que neste momento nós já não temos condições de pensar
com mais liberdade? Não é fazer. É pelo menos perguntar: o que ganhamos e o que
perdemos? Ficamos muito isolados no Mercosul. Não conseguimos fazer a relação
do Mercosul com a Europa - eu tentei, mas não funcionou. Não fizemos a Alca e
não avançamos tanto com nenhum outro bloco, nem com países. O Brasil tem um
acordo automotivo com o México, um acordo de livre comércio com Israel ou algo
semelhante e não sei com mais quem, se é que tem. Então, estamos muito
desarmados. Como coincidiu de termos este boom na China, o boom das
commodities, a questão perdeu relevância. No momento em que tiver uma
diminuição dos fluxos favoráveis chineses, vai ter necessidade de ter outros
mercados. E, aí?
Valor: Jorge Gerdau disse que a festa está boa, mas vai acabar.
FHC: Ele tem razão. Vai acabar. Acho que a gente poderia ter avançado mais,
pelo menos para uma posição mais consistente a respeito: vamos ou não vamos? Ou
vamos até certo ponto. Temos uma certa tendência histórica, por sermos um país
grande, ao isolamento. Você quebra este isolamento só com relações com países
menos poderosos que nós, alegando nos sentirmos confortáveis. Com o mais
poderoso nos sentimos mais complexados. Achamos que, se vamos chegar perto,
vamos perder.
Valor: A indefinição prejudica a liderança do Brasil na região?
FHC: O Brasil era naturalmente líder, hoje a coisa é mais complicada. O
continente se dividiu. Há o Arco do Pacífico [com Chile, Peru, Colômbia e
México], o Arco Bolivariano e o Mercosul [Brasil, Argentina, Uruguai e
Paraguai]. O Brasil sempre teve a posição que o [ex-presidente da Bolívia]
Carlos Mesa ressaltou, de conciliador, não de propriamente de quem impõe. Fomos
perdendo espaço, não queremos assumir posição. Então de alguma maneira perdemos
nossa relevância política no continente que era inconteste.
Valor: Mas durante o governo Lula o país não ganhou projeção como um global
player?
FHC: Na verdade, houve muita retórica. Quando você é global player não tem
que bater tanto no peito dizendo que é. Eu não vou negar que o Brasil ganhou
muita força, em função do seu crescimento, da democracia, da inclusão social.
Então deu mais peso para o Brasil, isso é indiscutível. Agora, que tenhamos
utilizado isso para exercer liderança é mais discutível. Não exercemos na
América do Sul. É o caso da Bolívia: só exercemos liderança cedendo. Nosso modo
de exercer liderança tem sido concordar, não tem sido dizer "não, isso
não".
Valor: Nos últimos anos, a região foi dominada por vários governos de
esquerda. Isso não poderia ter facilitado a integração?
FHC: É um exagero. O governo do Uruguai é considerado de esquerda, mas o
comportamento não tem nada a ver com o da Venezuela. Tem uma afinidade
sentimental, digamos assim, de setores de governos e partidos, mas não tem
necessariamente na condição política.
Valor: O Brasil ainda carrega a herança do modelo de substituição de
importações?
FHC: O país tem, um pouco tem. Qual era o ideal do passado? Aumenta a tarifa
e dá juro mais barato, assegura o mercado. Com muitos setores empresariais
ainda é isso o que o governo faz, de uma maneira ou de outra. Vai o BNDES e
socorre; manda diminuir o imposto para aumentar a compra de automóvel para a
indústria automobilística. É tópico, não era como antes. Mas é tudo assim,
ainda tem muito da reverberação desse passado, com a ideia de que o Brasil para
crescer tem que ficar isolado.
Valor: Mas outros países e blocos também não são protecionistas?
FHC: Isso não implica que você não tenha que defender seu interesse. Os
americanos se defendem, a China também. O Brasil vai fazer isso sempre, em
certas circunstâncias tem que fazer, só não pode ter medo de se abrir. Você não
vai morrer porque é mais favorável a maior flexibilidade de mercado. Você se
protege. Eu não sou um neoliberal, não é minha posição, eu não acho que o mundo
se resolva ampliando o mercado e não dando papel ao Estado e à regulação. Tem
que ser uma regulação inteligente, e quando você tem uma condição em que possa
se dar ao luxo de competir, compete.
Valor: Qual é o papel do Estado?
FHC: Não existe nenhuma economia moderna sem o papel ativo do Estado, o
resto é ideologia. Agora, você não pode confundir o papel ativo do Estado com
impedir que a iniciativa privada e social existam. A relação entre Estado,
sociedade e mercado não é um jogo em que alguém perde. Tem um jogo de
ganha-ganha, desde que um entenda o papel do outro e colabore. Você não pode
imaginar hoje que não haja regulação do Estado. Não pode imaginar que fundos
públicos não possam ser utilizados para obras de infraestrutura; que você
abdique do papel de condutor do Estado na política global do país.
Valor: Que direção pode ser tomada?
FHC: Por que não se pode fazer uma licitação aberta realmente? Mesmo que
você tenha a Infraero, por que não abre outros setores? Minha posição com
relação à Petrobras sempre foi essa: manter na mão do governo, porém compete.
Banco do Brasil: mantém na mão do governo, porém compete. E dois, administra
isso como empresa e não como repartição pública, ou seja, não deixe que o
interesse partidário penetre nisso para impedir a gestão. O Banco do Brasil não
precisa fechar, para que fechar? É até bom que exista. Em certos momentos é
necessário - para baixar os juros foi importante. Agora não pode utilizá-lo
como se fosse uma repartição pública, tem que respeitar os interesses de
empresa. O papel do Estado é impedir isso também: tanto que o estamento e a
corporação predominem quanto que os partidos penetrem lá e predominem.
Valor: Há quem pense que o modelo mais corporativista do Brasil tenha tido
um efeito benéfico, ao isolar e proteger o país durante a crise internacional
de 2008. O senhor concorda?
FHC: Eu sempre fui favorável a que o governo tenha instrumentos que permitam
sua ação efetiva. O fato de termos ajudou nessa crise, principalmente de
regulação e mesmo de ação. Eu acho que a economia brasileira, a economia
francesa ou mesmo a economia alemã são mistas. Economia puramente capitalista,
de mercado puro, tem nos Estados Unidos, com muita regulação, tem na
Inglaterra, pode ter em um outro país europeu. Em geral não é assim. Em geral,
há variedades de capitalismo. Não acho que o Brasil precise copiar o modelo
anglo-saxão. Não pode, nós não somos anglo-saxões, nossa cultura não é.
Valor: Qual deveria ser o nosso modelo?
FHC: É o que estamos construindo. Agora, qual é... Aqui, às vezes, o Estado
exagera. Nos Estados Unidos, o setor privado exagera.
Fonte: Valor Econômico
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