segunda-feira, 22 de agosto de 2016

História mostra que o poder se comunica por carta

Por Andrea Jubé - Valor Econômico

BRASÍLIA - Num tempo em que as pessoas se comunicam em 140 caracteres, por e-mail e WhatsApp, são as cartas que ainda escrevem a história da República. A presidente afastada Dilma Rousseff divulgou uma carta aberta aos senadores e ao povo brasileiro em que expõe suas razões para ser reconduzida ao cargo. Para selar o divórcio da titular da chapa presidencial, o então vice-presidente Michel Temer lhe enviou uma carta, em que se autodenomina "vice decorativo". Para vencer as eleições de 2002, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva redigiu a "Carta aos Brasileiros". E para entrar na história, Getúlio Vargas deixou uma carta-testamento antes de cometer o ato extremo.

Desde Pero Vaz de Caminha, a história do Brasil é contada pelas trocas de correspondências. O ex-presidente Lula chegou a sugerir a Dilma que carregasse nas tintas para produzir uma carta que causasse comoção na opinião pública e fizesse crescer a resistência ao "golpe", com a força história do documento deixado por Getúlio Vargas. Mas a mensagem da petista acabou repercutindo menos que sua decisão de comparecer pessoalmente ao Senado para se defender. "O fato novo foi a decisão dela de ir ao Senado, não a carta", lamentou ao Valor um auxiliar da petista.


O professor David Fleischer, do departamento de ciência política da Universidade de Brasília, diz que Lula estava certo ao sugerir a Dilma que tentasse repetir o feito de Getúlio, mas afirma que ela passou longe disso. "Até porque Dilma não deu um tiro no coração, afinal, as palavras de Getúlio estavam muito ligadas a esse gesto". O professor lembra que a carta de Getúlio tem sido tão reverenciada, que Leonel Brizola "prestava juramento com a mão sobre ela, como se fosse a Bíblia".

Fleischer ressalta que o impacto das cartas com fins políticos depende de dois fatores: as circunstâncias da divulgação e o destinatário. Ele explica que a "Carta aos Brasileiros" - com redação final de Antonio Palocci, futuro ministro da Fazenda - foi "estrategicamente muito importante" naquela conjuntura, porque atingiu o alvo - e cumpriu seu objetivo: afastar a desconfiança dos investidores e mostrar que Lula, se eleito, não seguiria o caminho dos "radicais do PT".

"Já a carta da Dilma tinha um alvo limitado, os senadores", prossegue o professor. "Ela tentou vinculá-la à nação, convocando uma coletiva de imprensa para ler a carta, mas os telejornais daquela noite não deram uma cobertura ampla", observa. Ele acrescenta que Dilma perdeu o timing. "Essa carta deveria ter sido enviada antes da votação da pronúncia, semanas antes".

Uma outra carta, oito meses antes, escreve outro capítulo do impeachment. Em 7 de dezembro de 2015 - cinco dias depois que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), autorizou a abertura do processo -, o então vice-presidente Michel Temer enviou uma carta a Dilma, onde faz um desabafo pessoal sobre a relação de desconfiança da petista em relação a ele e ao PMDB. "Sempre tive ciência da absoluta desconfiança da senhora e do seu entorno em relação a mim e ao PMDB. Desconfiança incompatível com o que fizemos para manter o apoio pessoal e partidário ao seu governo", diz um trecho do documento.

A carta, a princípio de cunho pessoal, foi parar nas mãos da imprensa, que a tornou pública.

Temer justifica, em latim, porque escolheu uma carta - ou seja, um documento escrito - para se dirigir à titular da Presidência: "Verba volant, scripta manent", ou seja, "as palavras voam, os escritos permanecem".

A carta de Temer teve a função de demarcar o papel de "coadjuvante" do vice - o "vice decorativo" - na gestão de Dilma. Alegando que não era ouvido, Temer tenta se descolar dos erros da gestão petista, inclusive das "pedaladas fiscais", que embasam o impeachment, bem como da "herança maldita", de déficit fiscal e 12 milhões de desempregados. "Foi a senha da traição", critica um líder petista. "Foi a senha para autorizar o rompimento do PMDB com o governo", define David Fleischer.

"As cartas são um estilo de documento", define a professora Albene Menezes Klemi, do departamento de História da Universidade de Brasília. "Elas perderam o uso em termos de comunicação pessoal por causa das novas tecnologias, mas funcionam como meio de expressão, principalmente para se dirigir ao público".

Ela cita exemplos da história mundial do protagonismo epistolar: o "J'Accuse", em que Émile Zola se reporta ao presidente da França, em 1898, a propósito do caso Dreyfus. A carta de Mahatma Gandhi para Adolf Hitler, em 1939, quando a Alemanha do Führer estava prestes a invadir a Polônia. Voltando ao Brasil, no episódio da carta de renúncia de Jânio Quadros, em 1961 ela brinca que se tratou, "praticamente de um bilhete".

Um levantamento produzido pelos Correios, a pedido do Valor, mostra que as cartas ainda são muito utilizadas como meio de comunicação, apesar do e-mail e dos smartphones. Mas o número não é expressivo. No ano passado, 134 milhões de cartas foram expedidas pelos Correios. Considerando a população de 204 milhões de brasileiros, segundo o IBGE, o número representa menos de uma carta enviada por pessoa ao ano. A média vem se mantendo. Neste ano, até junho, foram enviadas 62,2 milhões de cartas - praticamente a metade de 2015. Em 2014, a troca de correspondência foi de 131 milhões de exemplares.

Os números abrangem, exclusivamente, as cartas simples ou "sociais", excluindo a correspondência de pessoas jurídicas. Os Correios esclarecem que esse volume acaba incrementado pela "carta social", que permite aos beneficiários do programa Bolsa Família enviarem correspondências, com peso de até 10 gramas, por apenas um centavo.

Para a professora Albene Klemi, as cartas de Getúlio, de Dilma, e mesmo a de Lula - embora destinada ao mercado financeiro -, enquadram-se na categoria das "cartas-manifesto", em que líderes políticos deixam mensagens para a população com peso histórico. A carta do desenlace entre Temer e Dilma tem peso menor, até por vir a público na forma de um vazamento. "O vice se autonomeou vice decorativo, isso tem um grau de subjetividade grande", explica. "Reduz a objetividade que deve ter um documento histórico", reforça. "Enquanto a carta da Dilma deverá ser seu último documento oficial no cargo, ela escreveu história para a história", conclui.

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