segunda-feira, 22 de agosto de 2016

As divisões de Temer - Marcos Nobre

• PT e PSDB estão a reboque do baixo Centrão

- Valor Econômico

Conta-se que, a determinada altura do seu segundo mandato, FHC ouviu do senador Tasso Jereissati a proposta de romper com o PMDB. A ideia do senador era consolidar um bloco mais coeso com o parceiro preferencial, o então PFL, atual DEM. Ainda não foram publicados os "Diários da Presidência" desse período, mas ali por maio de 2001 havia registros na imprensa de que o ex-governador do Ceará tinha chances de contar com o apoio de FHC para uma candidatura presidencial no ano seguinte.

Era o momento da aguda crise energética, do Apagão. Diante da gravidade do quadro, FHC teria se valido de uma referência histórica para responder ao senador com uma pergunta: e quantas divisões temos? Na década de 1930, questionado pelo desrespeito à liberdade religiosa na União Soviética, Stálin teria dito: "Quantas divisões tem o Papa?". FHC teria perguntado a Tasso se o governo teria soldados e fuzis suficientes para enfrentar uma crise daquele tamanho sem as divisões do exército do PMDB, cuja presidência tinha acabado de passar para as mãos de Michel Temer.


O candidato do PSDB foi José Serra, como se sabe. Logo após o fim do racionamento de energia, em fevereiro de 2002, Serra foi diretamente beneficiado pela exclusão da pré-candidata do PFL, Roseana Sarney. Em abril daquele ano, a Polícia Federal encontrou uma montanha de dinheiro em espécie em uma empresa da então governadora do Maranhão. As cenas foram ao ar no Jornal Nacional e a candidatura presidencial de Roseana foi abatida antes de decolar. O PFL rompeu com a candidatura Serra. E Serra montou uma chapa presidencial em aliança formal com o PMDB.

Após um encontro com Temer na semana passada, o presidente do PSDB, Aécio Neves, fez a seguinte declaração: "O presidente não tem a possibilidade de errar de agora em diante. Nós apresentamos a ele os mesmos temas que já tínhamos apresentado, de reformas estruturais no país. O que nós ouvimos do presidente Michel e de alguns dos seus principais assessores é que ele tem absoluta disposição de inaugurar na semana que vem um tempo novo em seu governo, onde a agenda de reformas seja clara e o governo como um todo, não apenas o PSDB ou alguns dos aliados, lute por ela. Uma agenda que vai recuperar o país".

Por baixo da pretensão bom-mocista em favor do equilíbrio fiscal, a ameaça tem bases muito reais. Aécio não pode abrir mão de que Temer enquadre o baixo Centrão da Câmara. Não para abandonar ao relento esse enorme bloco de coisa de 220 deputados (PP, PR, PSD e tutti quanti), o que seria suicídio, mas para submeter esse paquiderme instalado no meio da política oficial a uma liderança mais ou menos unificada e coesa. O PSDB não pode aceitar ser reduzido a bucha de canhão do baixo Centrão. Exige pelo menos a presidência da Câmara a partir de fevereiro do próximo ano para manter seu apoio ao governo.

Para avaliar as chances de Temer enquadrar o baixo Centrão nesses termos, basta repetir a pergunta: quantas divisões tem o PSDB? E aí a pergunta ganha ainda outra dimensão. "Divisões" não significa apenas uma determinada quantidade de unidades militares de combate político, mas também rachas internos irremediáveis dentro do próprio partido. O PSDB se transformou em um território com três feudos e três reis. O partido dá lustro ao governo, mas não lhe dá sustento nem sustentação.

O baixo Centrão é o verdadeiro esteio do governo. Temer chegou ao poder por obra e graça do baixo Centrão. Se quisesse mesmo "desidradatar essa coisa de Centrão", como disse que queria, já o teria feito. O impeachment já foi votado na Câmara. Eduardo Cunha já foi afastado e um novo presidente da Câmara foi eleito para o seu lugar.

Adiar a solução do caso Cunha em nome de supostamente evitar turbulências na votação do impeachment no Senado é enganação política para quem gosta de ser enganado. E a enganação vai continuar depois da votação no Senado, com a invenção de mais uma desculpa daquelas que não desculpam ninguém. O governo Temer não pode assumir publicamente que sua autêntica base de sustentação é um bloco que tem em Eduardo Cunha seu símbolo e seu estrategista. Só que é.

Quem quiser entender como de fato funciona o governo Temer vai precisar parar de olhar para o PSDB e focar no baixo Centrão. Precisa parar de pensar que vitórias do paquiderme criado e alimentado por Eduardo Cunha são concessões que a virtude do ajuste presta ao vício da politicagem.

O baixo Centrão não quer ser obrigado a se submeter à liderança e à coesão impostas por um dos partidos líderes dos últimos vinte anos. O bloco se autonomizou em relação ao esquema de uma política que funciona sob a batuta seja do PSDB, seja do PT. Esses partidos estão em frangalhos, não têm mais condições de liderar ninguém. O baixo Centrão tomou agora diretamente o lugar que coube a PT e a PSDB desde o Plano Real. Pouco importa que o bloco não consiga alcançar qualquer unidade ou coesão discerníveis. Tampouco o governo Temer tem essa pretensão.

A configuração dos últimos vinte anos se inverteu. Agora, são PT e PSDB que estão a reboque do baixo Centrão. A nova oposição liderada pelo PT está tão perdida que não consegue demonstrar competência nem nos cálculos pragmáticos mais rasteiros. Ao entrar de corpo e sem alma ao lado de Rodrigo Maia na disputa pela presidência da Câmara, fez o cálculo errado. Indignidade por indignidade, teria ganho mais em se alinhar a Rogério Rosso. Como constatou, aliás, nas últimas votações, dívidas dos Estados entre elas, quando se uniu ao baixo Centrão.

Com o fim da interinidade, o PSDB se encontra acuado. Não tem qualquer influência relevante sobre o governo, mas também não tem como abandonar o barco. Superfaturou a seu favor o impeachment, o que o impede agora de dizer que nada tem que ver com sua consequência, o governo Temer. Se a pecha de traidor colou em Temer, trair o traidor neste momento não dará cem anos de perdão aos tucanos. Pelo contrário, pode destruir de vez o pouco que lhe resta, a torcida cada vez menos plausível por uma candidatura competitiva em 2018.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

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